sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Comer, rezar, amar

“Aqui nos Estados Unidos, o casamento tem um poder místico, intangível: é um passaporte para a idade adulta, para a respeitabilidade e, em certa medida, para a cidadania. Qualquer relacionamento ou estado civil que não seja ‘casado’ é considerado indigno”. A afirmação é de Elizabeth Gilbert, autora do best-seller “Comer, rezar, amar”, numa entrevista a revista Marie Claire. Seu livro deu origem ao filme com mesmo nome e que estreou esta semana nos cinemas brasileiros.

Nele não são apenas os americanos que valorizam tanto o casamento. Liz (personagem principal vivida por Julia Roberts) é questionada várias vezes por outras mulheres a respeito de seu estado civil e é com certo constrangimento que ela responde ser divorciada. Chega a confessar ao amigo que nutria um sentimento de culpa por ter terminado seu casamento, aparentemente, estável e com uma pessoa que gostava dela.

Liz resolve concluir a relação, quando percebe que o sentimento e o desejo sexual se esgotaram e que o casal passaria a uma vida de aparência. Ao terminar o casamento, ela sai a procura do auto-conhecimento e de equilíbrio espiritual. Sua busca é bem ao estilo dos livros de auto-ajuda orientais.

Assistindo ao filme, eu me perguntava: que fundamento para a vida ela encontrará? Confesso que alimentei com certa expectativa a esperança de algo que me surpreendesse. Não foi o que aconteceu. Liz roda três países para extrair conclusões que estão em qualquer livro de auto-ajuda: viver o prazer em si mesmo,  livrar-se de qualquer sentimento de culpa e abrir-se para o risco de um novo relacionamento. No final do filme, sua grande conquista é amar novamente com a mesma paixão do primeiro amor. Se ela tivesse encontrado o atual marido no início do filme, os outros ensinamentos seriam dispensáveis.

Podemos concluir, depois de assistir a “Comer, rezar e amar”, que a grande realização para a mulher é mesmo o casamento e, principalmente, quando ele vem acompanhado de um pouco de paixão. A conquista de Liz não é o amor com sexo avassalador, ou alguém por quem tenha que superar preconceitos sociais, raciais, etc. Não, é um amor adocicado, cotidiano, brejeiro. Sem altos nem baixos, mas constante como os finais de semana em família. Assim o fundamento para sua existência, sua grande conquista, é recuperar a situação de mulher casada, que a legitima socialmente.

Não sou atraída por esses amores bem-comportados, mas pelos amores ao estilo de Nelson Rodrigues. Em “Asfalto Selvagem: Engraçadinha, seus pecados e seus amores”, Luís Cláudio, um funcionário do Itamaraty, propõe a Engraçadinha: “Vamos fugir?” Ela pergunta: “Fugir? Ele responde: “Fugir, sim. Fugir simplesmente. É tão simples fugir”. O amor tem esse ímpeto de romper com tudo sem qualquer preocupação com o que virá depois. Fugir para onde? E fazer o que depois de fugir? Perguntaria qualquer pessoa numa situação de normalidade. Mas quem ama não se pergunta pelo que vai acontecer logo ali em frente. Por um momento a sociedade não existe. É completamente o oposto de quem está preocupado em legitimar-se na sociedade. Diz Renato Janine Ribeiro que o conflito com a sociedade do herói apaixonado vai além daquele vivido pelo revolucionário, pois esse ainda deseja salvar ou recriar a sociedade. Já o apaixonado escolhe a morte social, a morte de suas honras e riquezas, às vezes a própria morte (A Paixão Revolucionária e a Paixão Amorosa em Stendhal).

terça-feira, 5 de outubro de 2010

O amor não é produtivo


Adão e Eva, de Lucas Cranach
 Nenhuma outra sociedade, a não ser a moderna sociedade ocidental, estabeleceu o amor como base para o casamento. E é fácil entender a razão. O amor paixão é conflituoso com as rotinas da vida cotidiana. Pode fazer o indivíduo alternar situações de estrema tristeza a estrema euforia. Outras horas, o conduz ao simples estado contemplativo. Costuma também não respeitar as regras de relacionamento estabelecidas, subverte diferenças de renda, escolaridade, idade, raça e religião.


“O envolvimento emocional com outro é invasivo – tão forte que pode levar o indivíduo ou ambos os indivíduos, a ignorar suas obrigações habituais”, diz Giddens (1993: 48). Sem contar, que nunca sabemos realmente se de fato amamos. Podemos morrer de amor por alguém hoje e simplesmente odiá-lo amanhã. Por essa razão, em qualquer outra sociedade, o casamento se assentou em fundamentos mais sólidos e estáveis que o estado de encantamento do amor paixão. Estabeleceu-se a partir de contratos econômicos, trocas familiares e obrigações recíprocas.

Mas não é apenas a instituição casamento que, para sua sobrevivência, exige certo domínio sobre as emoções, várias outras organizações e instituições teriam seu funcionamento comprometido se os indivíduos que delas participam não soubessem ou não estivessem dispostos a controlar seus ímpetos de raiva, tristeza, alegria... Simplesmente, o mundo moderno com seus horários, exigências de produtividade, interações civilizadas não seria possível se não tivéssemos aprendido a dominar a torrente de nossos sentimentos.

Freud e Foucault descrevem a repressão da sexualidade como condição para o desenvolvimento de nossa cultura. A libido foi desviada da realização sexual para o trabalho, a arte, a produção intelectual, diz Freud. Já Foucault acredita que o Ocidente desenvolveu técnicas para reprimir a expressão da sexualidade e controlar a intimidade. Mas penso que os instintos e impulsos sexuais são apenas parte de um problema maior que é controlar e dominar todas as nossas emoções. Embora a sexualidade seja conseqüência também de nossas emoções – indivíduos tristes sentem menos disposição sexual, assim como o ciúme alimenta a imaginação e ativa em alguns casos o desejo sexual – não é suficiente o controle sobre a sexualidade e diria até que ele é mais fácil de se obter que o controle sobre a emoção.

A revista Veja (ano 43, n. 39, setembro 2010) traz uma matéria interessante sobre as emoções. Segundo a reportagem, as emoções estão associadas à tomada de decisões, das mais simples às mais complexas, e também resultam de algumas substâncias químicas produzidas pelo nosso organismo. Para o argumento que desenvolvemos neste texto, importa saber que em excesso qualquer emoção pode nos tornar extremamente improdutivos. Até mesmo alegria demais não é bom, poder levar o indivíduo a colocar-se em situações de risco: exagerar no consumo de álcool, praticar sexo inseguro, comprar compulsivamente... Por outro lado, a tristeza também tem seu preço: distúrbios do sono, problemas de peso, fadiga, irritação, apatia, lentidão física e intelectual, entre outras.

As emoções são muitas, mas não importa qual delas, seja em excesso ou em falta, são sempre improdutivas. São necessárias quando dosadas. O medo e a raiva, por exemplo, estão associados ao instinto de preservação, prepara o organismo para reagir em situações de perigo, para lutar ou fugir. Assim, podemos afirmar que se não tivéssemos aprendido a dosar nossas emoções, simplesmente não teríamos desenvolvido qualquer civilização. Melhor, a afirmação não é bem essa. Com base nos estudos de Nobert Elias, veremos que as emoções não são inatas. Elas se desenvolvem e se modificam em sociedade. De alguma forma, as emoções estão relacionadas a conteúdos morais e por isso, as reações das pessoas são diferentes conforme a cultura da qual participam e o momento histórico que vivenciam.
Adão e Eva, Lucas Cranach, 1526

Comportamentos que na Idade Média passariam por normais, hoje nos causariam repugnância, como: escarrar a mesa, mexer o molho com os dedos, limpar os dentes com a ponta da faca, limpar o nariz com a mão, beber no prato... Elias explica que o indivíduo está imbricado numa teia de relações que o leva a desenvolver um controle cada vez mais preciso sobre sua conduta. O que de início é um controle externo, no processo de socialização torna-se autocontrole automático, inconsciente, quase uma segunda natureza.

A reação de nojo é conseqüência de um processo de socialização que nos ensinou formas de condutas convencionadas como corretas. Desde a mais tenra idade, a criança aprende a calcular o efeito de suas ações e de outras pessoas e a controlar seus impulsos e ações. As emoções são reflexos ora de prazer, quando a conduta adota é socialmente aceita, ora como sanções, quando é reprovável. As estruturas psíquicas mais arraigadas e profundas provocam reações químicas conforme a leitura que fazemos do ambiente social.

Com o amor não é diferente. Corresponde a uma reação de prazer quando nos identificamos com o outro, mas um sentimento que também foi dosado e modelado no decurso do processo civilizador. Antes de tornar-se fundamento para o casamento, o amor era um sentimento clandestino, que acontecia entre amantes e em segredo; que desembocava no crime, no suicídio, na tragédia; e que não abria mão do ímpeto da raiva e do ciúme. O amor era uma doença para as famílias cristãs, até mesmo com sintomas descritos em livros médicos, e não recomendado às boas moças.

Transformamos o elemento de liberdade e transgressão do amor, num sentimento bem comportado, racionalizado e represado nas regras do casamento – que também mudaram. O casamento deixou de ser um simples contrato econômico e passou a incluir, entre os seus fundamentos, o amor e a vida sexual. O casamento perdeu desta forma grande parte das suas qualidades de racionalidade e pragmatismo, mas a sociedade conseguiu delimitar um espaço onde o amor pudesse existir sem colocar constantemente em risco as instituições. Não apenas deram-lhe um lugar, mas também fizeram seus participantes acreditar que o que antes era espontâneo e fugaz, poderia durar o resto da eternidade como parte do elemento divino no homem.