domingo, 23 de setembro de 2012


Nelson Rodrigues trouxe à Sociologia brasileira contribuições originais. Talvez esteja entre os nossos melhores sociólogos. Dedicou-se a diversos objetos de estudo, mas entre os seus preferidos estão o casamento como instituição e as díades. Provavelmente, Nelson Rodrigues nunca leu Simmel e não soubesse sequer o que significava díade. Mas de todas as suas investigações, as díades foram as que lhe renderam os melhores textos e as melhores peças de teatro.

Observou que nem todos os indivíduos possuem um comportamento adequado com os padrões sociais. Verificou mesmo que a maioria, em algum momento da vida, acaba cometendo algum tipo de desvio. Se tivesse lido Howard Becker, concordaria com o autor que os desvios são mesmo muito comuns. Um dos desvios que o motivou a inúmeros textos foi o adultério. O casamento, para ele, era uma instituição que não funcionava. As mulheres nem sempre participavam da escolha de seus futuros maridos, atendiam as preferências das famílias. Sentiam-se obrigadas a casar e apressavam a união com quem não tinham afinidade. Com o tempo, o casamento tornava-se um martírio, uma rotina sem fim, até o momento em que a mulher encontrava um grande amor.

Quando fala em amor, Nelson Rodrigues  é  sociólogo mais que escritor de literatura. Seu conceito de amor não faz referência ao jargão comum do que se entende por esse sentimento desde os românticos: amor para o todo sempre, indivisível, com casamento e filhos. O amor é um sentimento anti-social. O amor, para ele, é a identidade entre duas pessoas, vivida de maneira tão forte e extrema, que a sociedade deixa de ser importante e o casal rompe com todo vínculo social. Quando isso acontece, a conseqüência  possível é o crime, o suicídio, o assassinato...

A díade busca a sua sobrevivência, não a realização da sociedade. Qualquer pessoa que tenha um dia vivido um grande amor experimentou esse sentimento de desprendimento, do tempo correndo num ritmo diferente, de não se importar com a opinião dos amigos e familiares, de satisfação plena em simplesmente estar ao lado do outro. Por isso, as histórias de amor nos contos de Nelson Rodrigues terminam quase sempre em tragédia, não possuem como objetivo funcionar no mundo. Pelo contrário, as díades são pequenas sociedades de dois indivíduos que se satisfazem plenamente dentro da sociedade maior. Possuem um fechamento em relação à sociedade. Não são comuns e se fossem, simplesmente, causariam um caos social.

 É por essa razão, que Nelson Rodrigues diz que quem amou e não desejou a morte, nunca amou.  Porque, para ele, o amor no seu extremo  leva a um rompimento tão radical com a sociedade, cuja conclusão pode ser o suicídio.Um dos temas repetidos  nas crônicas de Nelson Rodrigues é a história de jovens amantes que planejam a morte juntos. Ou então, fugir do mundo. Não me esqueço dos personagens Engraçadinha e Luís Cláudio que ponderam se não seria mais simples fugir: “Vamos fugir” diz Luís Cláudio para Engraçadinha.  “É tão simples fugir!”, argumenta.

Porque o amor é um sentimento anti-social, nas histórias de Nelson Rodrigues,  nunca evolui para o casamento. Quase sempre se desdobra em tragédias, dificilmente, num casamento com véu e grinalda. Amor para ele não é o equivalente a “viveu feliz para sempre”, ou “tiveram muitos filhos” e “compraram uma casa”. Para ele, amor é desejo. Esse é o verdadeiro sentimento que une um homem e uma mulher, resultado de uma identidade intensa. O desejo arrasta os indivíduos para situações de conflito e rompimento com as normas sociais. É o que não estava no script, mas também é o espaço de transformação social e individual.

quinta-feira, 12 de julho de 2012


Você não conhecia a solidão até o outro chegar

As emoções são impossíveis de serem conhecidas senão pela interação com o outro. A própria solidão não é uma emoção que se possa experimentar sozinho. Um indivíduo, que nasceu e foi abandonado no Alasca por uma mãe ingrata, e que cresceu sem qualquer companhia, jamais compreenderá o que é solidão. Vamos para uma hipótese menos absurda. Um náufrago chega a uma ilha deserta, depois de certo tempo, ele esquece o que é dispor de companhia e também o que significa estar só. A solidão deixa de existir para ele. Somente o outro pode lhe dizer que está só.

A verdadeira solidão, que é aquela que não cessa mesmo no centro urbano, você só conhece quando surge a pessoa que  te completa. Nesse momento entende que esteve sozinho todo um tempo e nem percebeu. Era um solitário errante e nem sabia disso. Depois de conhecer a verdadeira solidão, o mundo se torna pequeno. Qualquer lugar do mundo não fará diferença, pois só faria se aquela pessoa estivesse lá. Ela não estará, então, qual a importância de para onde ir? Assim, você retorna a situação de errante. No final, penso que não há outra opção ao ser humano senão a condição de errante. Dificilmente, alguém tem a felicidade de viver por toda uma vida com a pessoa que lhe apresentou a solidão.

O que é válido para o sentimento de solidão pode ser estendido para  outras emoções. Veja a emoção do beijo. Ele pode ser apenas uma rotina burocrática. Odeio beijos burocráticos, mas eles são mais comuns que deveriam. Lembra-se daquele amigo que chega beijando todo mundo no trabalho? Pois esse é um beijo burocrático. Ele segue uma rotina, tem um horário, tem um significado comum e pode ser massificado. Burocracia weberiana puríssima!!! Não tem emoção nenhuma. A pessoa te beija burocraticamente, você finge um sorriso e que gostou, e todos experimentam aquela situação de normalidade. O verdadeiro beijo é anormal. Ele não estava na rotina. Ele não era esperado. Ele é uma quebra de rotina. Você lá ia naquela vidinha besta e de repente alguém surge no seu caminho, te abraça e sem te dar tempo de pensar, te beija. Pronto! Você descobre que há tempos não tinha sido beijado ou que nunca foi beijado! Você descobre a emoção do beijo e a sua falta. Há pessoas que vivem uma existência inteira sem conhecer o verdadeiro beijo, morrem sem sequer saber que ele existe.

Aqui leitor já não preciso mais explicar porque a emoção é uma construção social. Ela não existe antes da interação, não é uma qualidade biológica. No entanto, durante séculos foi colocada de lado como objeto de estudo pela Sociologia, porque não possui a concretude dos números, dos questionários, das tabelas... Como quantificar emoções? Como descrevê-las de modo científico? Como definir suas consequências e desdobramentos? Mas esses são desafios para Sociologia e não limitações.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

O vampirismo cristão


Minha amiga colocou-me um problema sociológico:  o vampiro da série O Crepúsculo, recorde de bilheteria no cinema e o preferido de adolescentes, quer casar antes de qualquer relação sexual. Pareceu-lhe que o vampiro perdera seu glamour ou que ocorria uma evidente contradição entre vampirismo e casamento. Em suas palavras:

- Veja bem, Cinara.  A menina está ardendo de desejo. Quase pede:  pelo amor de Deus transe comigo. E o vampiro resolve respeitá-la. Um vampiro que respeita!!! Antigamente, os vampiros davam mordidas, arrancavam sangue. Era o desejo vermelho pela alma. Agora o vampiro quer esperar o casamento!... Só casando!...

Para a Sociologia, é possível explicar por que  o vampiro deixou de ser uma entidade maléfica? De um ser excomungado pela Igreja, a quem foi retirado o direito de morrer, tornou-se o menino bem comportado que ama de maneira contida e quer casar? Ora, se voltarmos ao Drácula de Bram Stoker – obra que marca a criação do personagem, embora a lenda do Conde Drácula seja anterior a publicação  – sem dúvida, há uma distância imensa entre o personagem de O Crepúsculo e aquele do romance de 1897.

O vampiro de Bram Stoker é um guerreiro que rompe com a Igreja Católica por não perdoá-la por provocar o suicídio de sua amada. Ama tanto sua esposa, que vai contra o mundo real e os céus. Condenado a viver numa zona intermediária entre o Céu e a Terra, sua alma errante inspira o desejo nas mulheres, como se o desejo fosse uma doença sem cura, que consome não apenas o corpo, mas o espírito após a morte. O desejo profano. Já o vampiro da série Crepúsculo é um vampiro cristão, que respeita o casamento como um ritual necessário e anterior ao sexo. Mas por que? Por que recriamos o vampiro como cristão no século XXI?

Não tenho uma resposta pronta para a questão. Aliás, acho que a pergunta é mais necessária que a resposta. Vou dar algumas sugestões, mas antes gostaria de afirmar que vejo o fato como mais uma evidência de uma tendência comum ao comportamento moderno: estamos evoluindo para uma sociedade mais assexuada. Não vou me surpreender quando chegar o dia em que o sexo se tornará vulgar, feio, brega ou qualquer coisa do gênero.

Tenho um amigo homossexual que divulgou seu noivado no Facebook. Fiquei pensando, qual o sentido do noivado na relação homossexual? Os homossexuais têm tudo para serem diferentes, pois romperam com a família, o vizinho, os amigos, os coleguinhas de escola... Mas não, o indivíduo resolve dar um passo atrás e quer legitimar sua união a partir do mesmo ritual sagrado criado pela Igreja Católica. O ritual que serviu de fundamento para discriminar, queimar na fogueira os próprios homossexuais... Eles não foram apenas mais infelizes em razão da Igreja Católica, eles foram queimados vivos pela Igreja Católica. Mas no século XXI, o homossexual diz: “Nós também podemos ter um casamento cristão”. “Também somos filhos de Deus!”. “Também amamos para o todo sempre!”. “Temos o direito de constituir família, ter filhos, deixar herança...”  Sim, é verdade. Acontece que todo esse arsenal capitalista, que ele reivindica, foi construído com base na renúncia à sexualidade e o movimento homossexual se fez na afirmação da sexualidade. O desejo sem justificativas. O sexo pelo sexo. 


O vampiro que quer casar antes de fazer sexo é irmão do homossexual que ficou noivo. São exemplos de um mesmo fenômeno do mundo moderno: evoluímos para uma sociedade cada vez mais disciplinar. Aqui, lanço mão de Nobert Elias para explicar o conceito.

Para Elias, o tecido social, a rede de necessidades em que está o indivíduo o leva a desenvolver  maior controle sobre pulsões, instintos e provoca reações emotivas a situações que antes passariam por normais ou corriqueiras. Por exemplo, hoje, soar o nariz  à mesa provoca reações de nojo em quem assiste. Elias foca seus estudos na refinação dos hábitos sociais que acontece quando a nobreza migra para a Corte, na França. Demonstra que as emoções humanas não são intrínsecas, necessárias e de origem biológica. Nascem e se modificam conforme o momento histórico e a rede de relações sociais na qual estamos inseridos. Nem sempre sentimos asco, amor, tristeza pelos mesmos fatos. A disciplinalização de conduta, uma espécie de autocontrole, desenvolve reações emocionais diferentes conforme a pressão social a que o indivíduo está submetido.

Mas o que isso tem a ver com o vampiro que casou e o homossexual que ficou noivo? Na atualidade,  associamos cada vez com maior naturalidade amor e sexo, como dois momentos necessários e coincidentes.  Não nos permitimos pulsões sexuais divorciadas de qualquer sentimento. Não permitimos o desejo acontecer simplesmente, é preciso que ele ocorra num lugar específico, numa situação planejada e abençoada, coroado pelo amor. Em outras palavras, é preciso refrear  os instintos  e pulsões até o momento do sagrado. Sei que dirão que no passado a sexualidade foi muito mais reprimida e o casamento uma instituição muito mais legítima e necessária que hoje. Acontece que, até os anos 60, não se supunha o casamento como o espaço ideal para vivenciar a sexualidade, pois a mulher estava excluída desse direito. Somente quando conquistou lugar no mercado de trabalho, a mulher passou reivindicar e a defender a realização no casamento nos vários aspectos da vida, incluindo, o sexual.

Posso afirmar, depois de tudo que li sobre casamento nos documentos da Igreja Católica, que essa instituição não foi criada para vivenciar a sexualidade. O casamento foi durante muito tempo um mero contrato econômico, laico, que ocorria entre famílias e sem qualquer  participação da Igreja.  Essa só irá reivindicá-lo como um sacramento, no século XII, com o objetivo político de interferir na união entre famílias nobres, o que significava a  anexação ou partilha de territórios e, em outras palavras, poder.  O casamento foi aceito pela Igreja como um celibato de menor grau. Pois, até então, pensava que a vida religiosa era para poucos, pois poucos estariam preparados para renunciar completamente ao mundo e a dedicar a Deus todos os seus dias. Havia um divórcio entre a vida dedicada a Deus e a vida mundana. O casamento é uma concessão da Igreja, que nasce com a reforma de seus dogmas.

Quando a Igreja começa a legislar sobre o casamento, desenvolve todo um conjunto de normas, onde estabelece os períodos permitidos  e até mesmo as posições aceitas na relação sexual. Há uma discussão entre historiadores sobre a influência que essas normas tiveram no crescimento populacional da Europa, já que os períodos em que o casal ficava proibido de manter relação sexual alcançavam parte considerável do ano. Somente na atualidade, o casamento passou a associar-se ao amor e a incluir também a sexualidade. O fundamento da união é o sentimento de amor, coroado pela realização sexual do casal. Essa associação, e diria confusão, entre amor, casamento e sexualidade é uma invenção atual.

Há uma evidência de que é possível a união duradoura, envolvendo sentimento e sexualidade. Parece claro que as coisas devam acontecer dessa forma, mas não é tão claro assim, pois só no século XX essa convenção se popularizou. No passado, os três momentos estavam muito bem separados. O prejudicial nessa associação é que ela cria regras morais para a sexualidade:  “só quando amamos uma pessoa é moralmente correto ter relações com ela”, ou que será preciso antes obedecer um ritual para viver qualquer experiência sexual. Há um elemento de incivilizado na sexualidade e no amor romântico que somente um longo processo civilizador possibilitou que a instituição casamento os incluísse e que estivessem tão naturalmente associados.