"Como tu queres que nós não
tenhamos dúvidas, se elas nascem do amor?”
D. Pedro à Marquesa de Santos
A dicotomia entre razão e emoção
nas cartas de D. Pedro à Marquesa de Santos
Importante ressaltar que a sociedade brasileira não via com bons olhos a dupla relação de D. Pedro. Tanto que não foi sem resistência das famílias nobres da época, que D. Domitila matriculou sua filha, Dona Francisca Pinto Coelho de Mendonça, no colégio de Madame Mallet, no Rio de Janeiro:
“Várias das melhores famílias retiraram seus filhos do colégio. Muitas
falaram da ofensa que lhes havia sido feita com o enviar uma filha de tal
pessoa entre seus filhos, e é certo que em parte pelo sentimento geral sobre a
situação, mas principalmente por um verdadeiro respeito a Imperatriz” (Rangel,
1984:200).
Apesar das resistências e
críticas, o caso com D. Domitila era notoriamente conhecido pela sociedade e reconhecido pelos familiares.
Tanto era pública a segunda relação, que D. Pedro registrou todos os filhos que
teve com Domitila e, por decreto, obteve o reconhecimento da Igreja Católica. Nas
cartas que escreveu à amante, em vários momentos envia lembranças aos seus familiares e empenha ajuda financeira. Entre as cartas organizadas por Alberto
Rangel, constam algumas direcionadas diretamente ao pai e a mãe de Domitila.
Deduz-se daí que o relacionamento era conhecido e aceito por seus familiares.A hipótese que tenho é que para D. Pedro era natural manter uma amante, pois o casamento não incluía a realização sentimental, não exigia para a sua concretização qualquer sentimento entre o casal, que não fosse de respeito e no máximo amizade. O amor acontecia fora do casamento, como um sentimento marginal. Por essa razão, não havia contradição para D. Pedro I entre estar casado e nutrir um sentimento devotado por outra pessoa. Tanto que em todas as cartas a Domitila, D. Pedro conclui dizendo-se “amigo, amante, fiel, constante, desvelado, agradecido e verdadeiro” (idem, 215). Para o imperador, a situação de amantes não diminuía o sentimento, não o tornava menos verdadeiro e fiel. O casamento era meramente uma exigência política e social, que ele, compreendendo a sua posição, respondia a contento.
Quando D. Leopoldina vem a falecer, há uma expectativa se ele se casaria ou não com D. Domitila. No entanto, nas cartas que trocam os amantes, em nenhum momento eles discutem essa hipótese. É interessante a maneira como racionalmente D. Pedro escolhe quem será a sua segunda esposa oficial. Atribui ao barão Maréschal o trabalho de buscar um segundo casamento. Inicialmente, eles passam em revista as damas da nobreza solteiras: “...Ele então disse que sabia, pela finada imperatriz, que a duquesa Marie Anne era muito doentia, o que não lhe convinha. Fez outra objeção à princesa de Nápoles e lembrou-se naturalmente das duas princesas da Baviera” (idem: 209). Ele deveria, então, enviar correspondência à corte dessas possíveis noivas e aguardar até um ano a resposta. Como o prazo lhe pareceu muito longo, resolveu solicitar ao seu ex-sogro a mão de uma de suas cunhadas. Mais prático.
O barão Maréschal, responsável
por realizar contatos com o imperador da Áustria, conclui que: “Tal casamento restabelecerá nossas relações
e facilitará os negócios com Portugal, e penso mesmo que a princesa que
conceder sua mão a Dom Pedro, se agir com inteligência, não terá que se
arrepender de sua decisão” (idem: 209).
As cartas de D. Pedro à Marquesa
de Santos ilustram muito bem a tese que venho defendendo neste blog: a associação
entre amor, sexualidade e casamento só aconteceu recentemente. Mesmo no século
XIX, que é o momento em que se desdobra a história de amor do imperador
brasileiro, tal associação ainda não está consolidada. O amante daquele século
sabia diferenciar muito bem casamento e amor, também tinha convivência pacífica
com sua sexualidade. Chama a atenção a forma natural como D. Pedro descreve os
problemas fisiológicos ou infecções que ocorriam ao seu órgão sexual. Não é uma
troca de intimidade entre amantes. Hoje, seria muito mais romântico não fazer
tais descrições:“Tua coisa apenas deitou uma pequena lágrima de água branca e tem a venta alguma coisa arrebitada, mas não há de ser nada e creio que será procedido da debilidade que ainda entretém esta umidade no canal da uretra” (idem:49)
“Para veres a esquisitice de tua coisa, remeto a camisa, e onde vai
pregado um alfinete verás oque deitei espremendo às seis horas, e mais acima o
que espremi depois, que já não é nada” (idem:39)
As cartas de D. Pedro demonstram,
ainda, outra hipótese que tenho defendido neste blog, a de que durante muito
tempo o amor erótico foi tratado como um sentimento que deveria
localizar-se fora da família. Em razão
de suas características e do
comportamento que dele derivava, não poderia servir como fundamento para o casamento.
Reconhecia-se no amor aspectos de “irracionalidade”, que impediriam estruturar
uma família tendo-o por base. Quero afirmar que nossos antepassados delimitaram
com maior clareza a esfera de racionalidade e a esfera da irracionalidade da
vida. Embora até hoje reconheçamos o comportamento um pouco irracional de quem se apaixona, a novidade é que só agora ele tornou-se a base do matrimônio. O amor passou a existir dentro de uma instituição voltada para responder a questões objetivas da vida como: criar filhos, educá-los, pagar as contas no final do mês, planejar orçamento etc. A associação entre casamento e amor seria tão absurda ao homem do século XIX, quanto é para nós hoje exigir que dois empresários, a fim de constituir sociedade comercial, tenham que se apaixonar e fazer sexo.
[1]Assis,
Machado. s/data. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Edigraf, São Paulo, Brasil,
página 69.