quarta-feira, 10 de março de 2010

O narcisismo contemporâneo e a sexualidade


Não há amor sem individualidade. A afirmação parece óbvia e pressupõe o absurdo que alguém possa existir sem ser uma individualidade. Não é óbvia nem absurda. Somente para as sociedades ocidentais contemporâneas parece evidente que a toda pessoa corresponda uma individualidade. A Idade Média, por exemplo, é uma época em que os espaços para a construção da individualidade são restritos. A identidade do indivíduo é a família a que pertence, qualquer perda de prestígio e de poder que a família sofra, o afeta diretamente, não apenas em suas relações econômicas, mas também pessoais.

Quando ele pergunta quem sou eu, olha sobretudo para o passado de sua família, seu prestígio, suas propriedades e seus valores. O indivíduo está preso numa rede de relações que fixa seu futuro, sua profissão e com quem deve casar-se. O que o une o casal são deveres familiares e não afinidades ou afetividades. “Um casamento vantajoso eleva a posição do marido e a dos membros de sua linhagem: conserva-se preciosamente seu traço nas genealogias ‘casa’” (Dominique Barthélemy, A vida privada nas casas aristocráticas da França feudal, 2009:129). O amor, na Idade Média, só é possível fora do casamento, como um sentimento pagão e marginal. O amor cortês dos trovadores não existe no matrimônio, desenvolve-se nas relações extraconjugais. É vivido principalmente pelos jovens cavaleiros excluídos do direito de contrair casamento - direito restrito ao primogênito. Sendo assim, o amor é uma contravenção, uma insubordinação contra as regras familiares e religiosas e, portanto, um exercício de individualidade.

A comparação com a sociedade medieval é interessante, pois ela é o oposto do mundo que experimentamos. Se a Idade Média é um período em que o indivíduo tem pouca liberdade para fazer suas escolhas e vivenciar experiências fora das regras familiares e religiosas, no mundo atual há uma exacerbação da individualidade para o extremo do narcisismo. Não que o indivíduo contemporâneo tenha sido esvaziado de suas raízes culturais, mas os parâmetros de sua identidade são cada vez mais estéticos e de consumo. Não sei exatamente quais são as consequências sobre as relações amorosas, mas acredito que há um abandono da sexualidade, uma impaciência com o jogo amoroso em favor de outras realizações que traduzam status e poder.

Encontrei evidência empírica disso. Não é bem uma evidência, mas um indício. Na pesquisa que Datafolha realizou, 10% dos casados disseram que não fazem sexo. Desses, 25% têm entre 25 a 45 anos, ou seja, estão numa idade que seria de plena atividade sexual. Interpretando o caso, a terapeuta Tai Carvalho disse: “Fico perplexa com a quantidade de casais que trocam o sexo pela relação com o consumo, o trabalho, a boa forma, as conquistas materiais. Estão atrás de viagens, da reforma da casa, da escola para os filhos. Esse é o erotismo deles” (Folha de S. Paulo, 21.02.2010). Acho 25% de 10% um universo muito pequeno para qualquer afirmação, mas nos incita a pensar se há ou não uma migração do desejo sexual para outras realizações, se não seria reflexo de um extremo narcisismo.

O jornalista comenta que num País sensual, o jovem abriu mão da sexualidade. A aparência de corpos dourados comunicam sensualidade, mas também podem ser sinônimos de narcisismo, que é justamente o oposto de sexualidade. Observo que ocorre um crescimento das academias, das clínicas de dermatologia, das cirurgias estéticas, dos cremes rejuvenescedores e mesmo de objetos de consumo que traduzem jovialidade. Queremos fazer mais sexo em função disso? Creio que não. Estamos apenas preocupados com o que vamos encontrar no espelho e o sentido do que vamos transmitir nos grupos que participamos. A velhice não é um atributo desejado e valorizado em nossa sociedade. Tem um peso não apenas nas relações individuais, mas mesmo nas profissionais. Ser jovem e bonito é também ser bem sucedido. Associação absurda, mas muito natural nos dias de hoje.

Volto a falar sobre individualidade e amor num próximo post.

2 comentários:

  1. Cinara, conheci seu blog por meio de um "teaser" no facebook. Muito bom! Tema e e textos interessantes e bem construídos. Parabéns. Além de me tornar seguidor, já o adicionei ao blogroll do meu mar de coisa. Eu mantenho três blogs: www.mardecoisa.blogspot.com (crônicas e generalidades), www.leandrowirz.blogspot.com (poemas) e www.galeriawirz.blogspot.com (fotos).
    Sucesso! Bjo

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  2. Cinara, acabei de conhecer seu blog, eu sou uma pessoa muito restrita no que eu gosto de ler e, sinceramente, apreciei muito a sua ideia e a sua relação com essa ideia, expressa no texto.
    Abraço!

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