domingo, 3 de janeiro de 2010


O amor como ilusão


Os autores que escreveram nos séculos XVI e XVII viram o amor como ilusão, simples artifício da imaginação, produto dos jogos de sedução. Dirá o leitor que ainda hoje é assim. Engana-se, temos menos convicção de sua artificialidade. Acreditamos que a perfeita combinação de gênios, a proximidade de gostos e valores, o desejo sexual, tudo isso somado é capaz de produzir um sentimento que se expressa na intensa necessidade do ser amado e na completa realização quando ao seu lado. Nos séculos XVI e XVII, tal visão faria sorrir, pois para os escritores desse período não eram identificações que fundamentavam o amor, mas sim estratégias banais que suscitavam a fantasia (a maquiagem da mulher, sua roupa, o arranjo das palavras...). O sentimento era resultado de artifícios que fomentavam a imaginação e provocavam uma espécie de obsessão.

Assim, não eram sinônimos de amor, sentimentos como cumplicidade, solidariedade, amizade, companheirismo e outros comuns ao homem contemporâneo. O amor era resultado da corte, que aprisionava o amante numa trama de aparências e artifícios. Associava-se a estupidez, loucura, doença, ilusão, crime, irracionalidade e outros termos pouco nobres.

Em "Do Amor", Stendhal explica que o objeto da paixão não é o que o outro de fato é, mas sim suposições que se faz do ser amado, construção mental resultante dos contratempos e desencontros, que terminam por incentivar a imaginação e levar o indivíduo ao estado que chamou de "cristalização". Stendhal não estava satisfeito com a expressão, mas dizia não encontrar nada melhor para definir o jogo de amor.

De acordo com Stendhal, cristalização é um processo que começa com um simples olhar e evolui conforme a imaginação do protagonista. Acasos se somam a trama e a impossibilidade de falar de fato com a amada, de conhecê-la e aproximar-se, faz o enamorado construir uma ficção. Aos poucos, a curiosidade cristaliza-se como uma obsessão na medida em que a dama não oferece oportunidade para o cavalheiro desvendar quem ela é. O pudor, o recato, os cuidados que a família tinha com a jovem favoreciam e incitavam a imaginação do homem, na opinião de Stendhal, levando-o a construir uma imagem perfeita e bela do ser amado.

A visão de Stendhal não é diferente de outros autores que escreveram no mesmo período. Balzac, em Esplendores e Misérias das Cortesãs, narra o processo de sedução de que foi vítima o duque de Nucingen. A cortesã Esther, orientada pelo maquiavélico Jacques Collin, cria uma trama que incita os sentidos e imaginação do austero, racional e prudente homem de negócios, levando-o a gastar fortuna com seus caprichos.

Em Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos também repete seqüência semelhante de fatos entre o Visconde de Valmont e a presidenta de Tourvel. O visconde tenta seduzir a presidenta colocando-a num jogo, em que ela não conhece as regras. Mas é a resistência que a senhora faz a sua corte, que o apaixona. O feitiço vira contra o feiticeiro e conquistar a presidenta torna-se uma obsessão para Vamont. Ele começa a imaginar sua personalidade e termina completamente seduzido pela imagem que construiu.

Quando descreve a presidenta para a marquesa de Merteuil, ela conclui que ele só poderia estar apaixonado para produzir imagem tão idealizada. O fato de encontrar qualidades únicas e raras na presidenta denuncia a Merteuil que ele está caído de amor, traindo o pacto estabelecido entre eles de apenas seduzirem, mas jamais deixarem-se se apaixonar.

Não é uma posição diferente da sustentada por Marquês de Sade, quando compara o amor à religião, em “Crimes do Amor”. Para Sade, o amor é um jogo onde vence o mais esperto, o mais articulista, o mais racional. O amor romântico, puro e virtuoso, pertence aos fracos, aqueles que de tão inocentes mais se aproximam dos idiotas. Os apaixonados são aqueles que se deixam iludir por imagens, por artifícios de vaidade e interesses. Não se trata de um sentimento verdadeiro de reconhecimento da imagem do outro. É uma ilusão que o amante alimenta seja em razão da beleza, da riqueza ou heroísmo idealizado no outro.

2 comentários:

  1. Estou ansioso para ver a que conclusões, ou direções vai chegar tua reflexão... Cômoda a posicão de crítico e espectador! Rs Rs
    O Dogma do amor romântico, sempre foi muito caro para a maioria das mulheres de nosso tempo...

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  2. Perfeito! Adoro esse tema...

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