quarta-feira, 30 de junho de 2010

O amor e o pudor em Stendhal



O amor é o milagre da civilização
Stendhal


Terminei de ler o Vermelho e o Negro e deveria voltar aqui para comentá-lo, conforme prometi. Mas preferi adiar um pouco e fazer uma comparação com outro livro do autor, Do Amor. Nessa obra, Stendhal teoriza o que exemplificará na literatura.

O amor para Stendhal é um artifício da imaginação, uma construção mental, criação que faz vítima seu próprio autor. Ora ele o chama de loucura, ora diz que é como uma febre que nasce e morre sem a interferência da razão.

Para Stendhal, o amor não era um sentimento natural e presente em qualquer momento da história da humanidade. Em Do Amor, ele repete que camponeses e selvagens, preocupados com a necessidade imediata da sobrevivência, jamais o experimentaram. Ele era resultado da refinação dos costumes, da delicadeza dos prazeres, das horas de lazer e solidão que a vida na corte propiciava. A distância social e a formalidade a que os nobres estavam sujeitos facilitavam os jogos de conquistas, os flertes  e a construção de uma imagem idealizada do ser amado. A partir de pequenos detalhes, o amante projetava qualidades que a pessoa sequer pensou em aparentá-las. A esse processo ele chamou de cristalização –   como cristais que depositados sobre as folhas de uma árvore lhe dão outra forma em nada parecida com a original.

Ele explica que os “jogos de corte” não apenas criavam condições ideais para os arroubos da imaginação, mas que a união ou apenas a proximidade com nobres ensejava oportunidades sociais e políticas raras: “Não havia cortesão que não sonhasse com a fortuna rápida de um Luynes ou de um Lauzun, e mulher amável que não visse em perspectiva o ducado da madame de Polignac” (Do Amor, 2007:21). Assim, a possibilidade de ascensão social ou de subverter as regras sociais, que limitavam o contato entre indivíduos de classes sociais diferentes, funcionava como uma espécie de atrativo ao amor.

Na visão de Stendhal, o amor é o resultado de uma vida social que favorece a imaginação, mas também da dissimulação e repressão dos sentimentos. Porque o nobre não podia simplesmente expressar seu desejo, ele precisava cumprir todo um ritual de conquista  que o tornava vítima de seu próprio jogo. Segundo Stendhal, a vida na corte exigia, principalmente da mulher, que dissimulasse suas emoções. Quanto mais altiva e distante ela fosse, melhor transmitiria a imagem de pudor, elegância e sofisticação. Daí Stendhal dizer que o pudor é a mãe do amor.

A conduta regrada da dama fixava uma distância do cavalheiro, que o levava a imaginar suas qualidades em lugar de experimentá-las. O amor era assim a sublimação do desejo? Não afirmaria isso, mas sim que o amor era o resultado da sublimação das emoções, de qualquer emoção um pouco mais exaltada e desmedida: alegria, tristeza, ansiedade...

“O Vermelho e o Negro” é uma exemplificação de toda a teoria de Stendhal. Julien Sorel e Mathilde nunca estão certos do que sentem um pelo outro. Ora estão possuídos por um sentimento maior que a razão e contra o qual não podem impor qualquer resistência, ora simplesmente esqueceram o que sentiam há uma hora. O menor detalhe destrói a imagem do ser amado, assim como o menor detalhe é suficiente para construir uma imagem super estimada do amado:

“Mais do que levado pelo amor, ele mesmo excitava sua imaginação. Era depois de perder-se em devaneios sobre a elegância do porte da srta. De La Mole, sobre o gosto excelente de seus trajes, sobre a alvura de sua mão, sobre a beleza de seu braço, sobre a disinvoltura de todos os seus movimentos, que ele se sentia apaixonado. Então, para completar o encanto, via nela uma Catarina de Médici. Nada era profundo demais ou perverso demais para o caráter que ele lhe atribuía” (O Vermelho e o Negro, 2003:347).

Suas palavras tão francas, mas tão estúpidas, vieram mudar tudo num átimo: Mathilde, segura de seu amor, desprezou-o completamente” (ibidem:380).

A conquista do amante se faz não com claras declarações do que se sente, mas com dissimulações. Em seus ensinamentos, o príncipe Korasoff diz a Julien que para conquistar a orgulhosa Mathilde precisava aparentar o contrário do  que se esperava dele.

Meu interesse na obra de Stendhal não é tanto pelo seu conceito de amor, mas sim em recolher as pistas que deixou sobre o processo pelo qual se deu a “repressão” dos sentimentos na corte francesa do início do século XIX. Me interessa, sobretudo, a descrição que faz da associação entre a dissimulação de qualquer emoção e o status de classe social. A dama da corte não poderia simplesmente declarar seu sentimento, precisava aparentar certo orgulho, desprezo e distância social. A sofisticação e a distinção associavam-se ao pudor. Também os jogos de sedução faziam parte de um script, eram brincadeiras que divertiam e faziam gastar o tempo da nobreza ociosa e cuja riqueza levava a um sentimento de tédio e fastio.

O que não é possível compreender, considerando apenas a obra de Stendhal, é o percurso completo pelo qual o processo civilizador transformou o ideal do amor, que já foi completamente subversivo, num sentimento regrado e produtivo. Apesar do amor em Stendhal ser um artifício da imaginação, ainda assim é possível identificar elementos de rebeldia no imaginário que o cerca. O que encanta Mathilde em Julien Sorel é a possibilidade de contravenção social, de desafiar as regras sociais ao unir-se a um homem de classe social inferior. Por outro lado, o que despreza é a mesmice de um casamento arranjado segundo interesses puramente econômicos e de status. Se voltarmos a um momento anterior a obra de Stendhal, o amor é um sentimento ainda mais excluído dos espaços instituídos. Tomemos o exemplo de Tristão e Isolda. Ela era uma rainha, que abandona seu título para viver ao lado de um rude cavaleiro e na completa miséria.

Hoje, o amor é um sentimento cujo ápice de sua realização se faz na união estável com filhos e férias anuais. A concretização deste sentimento é o casamento e a família. É preciso entender qual foi o caminho pelo qual domesticamos nossas emoções para que coubessem nos limites estreitos da vida doméstica. Minha hipótese é que precisamos acrescentar às descrições de Stendhal as contribuições da Igreja Católica e do Protestantismo. Assunto para o qual pretendo retornar no próximo post.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Onde estará o amor no século XXI?....

Um amigo postou esta foto no Facebook e resolvi trazer para cá. Fiquei pensando, por que se tornou cada vez mais difícil encontrar namorados aos beijos? Onde eles se esconderam? Ou foram simplesmente embora? Há tantos corações desenhados em camisetas, bonés e agendas à venda nos shoppings, mas menos beijos nas filas do cinema. O cinema era a desculpa para o beijo. Não é mais necessária a desculpa, então por que o beijo? Foram se embora os amantes, esvaziaram as filas dos cinemas, e os gramados das praças também estão desertos. Onde estará o amor no século XXI?


Estou lendo O Vermelho e o Negro de Stendhal. Logo, comentarei aqui. Posso adiantar que nesta obra observamos algumas evidências sobre como era interpretado o amor no início do século XIX. Antes de tudo, ele é um jogo social, por isso a menor atitude pode provocá-lo ou ofuscá-lo. É preciso certa habilidade para controlar palavras e expressões, saber interpretar a troca de olhares e os mais pequenos gestos. É uma linguagem sofisticada pouco acessível a um camponês sem instrução. Também amar é atravessar a fronteira do pecado e entregar-se aos arroubos de uma doença obsessiva. O amor situa-se entre a insensatez e o crime, por isso não há um espaço instituído para ele na sociedade do início do século XIX.