domingo, 14 de julho de 2019


A Igreja Católica e o casamento

 Qual foi o processo histórico que levou a estranha associação entre sexo, amor e casamento? Esse foi o problema de pesquisa a que me dediquei durante alguns anos e cujas anotações estão neste blog. Para Sociologia, usando uma classificação de Weber, sexo é um impulso instintivo; o amor, uma ação social quase racional e o casamento, uma instituição com finalidades práticas e objetivas, no  mínimo uma ação social orientada para valores. Como reunir, na mesma salada, ações com características diversas? Quis entender em que momento da história da humanidade aconteceu a confusão e quais foram seus principais atores.
Nem sempre amor e sexo estiveram incluídos no casamento. A confusão começa no século XVI e a Igreja Católica deu uma boa contribuição. O amor era um sentimento marginal, associado a comportamentos doentios. Os livros de Medicina do período descrevem os sintomas dos seres enamorados como se tratasse de uma doença física. Por isso, as famílias cuidavam para que os  jovens não  sofressem de mal tão perigoso, que não possuía tratamento certo e que, em situações extremas, poderia levar o indivíduo a morte. O assunto, problema restrito a Medicina doméstica, torna-se qualidade fundamental do casamento a partir do Concílio de Trento (1545 – 1563). A Igreja Católica faz uma reforma de sua doutrina e, entre as mudanças, eleva o casamento ao status de sacramento.
Até a Reforma Protestante, o casamento era uma celebração pagã que se realizava na porta da Igreja,  no ambiente externo, pois os interesses mundanos que orientavam o casamento não poderiam ser discutidos no ambiente sagrado da Igreja. Tratava-se de um contrato econômico entre famílias para decidir fusão de propriedades, transmissão de herança ou questões diplomáticas entre condados. Ao realizar o Concílio, a Igreja cria um novo tipo de celibato, acessível ao homem comum: o casamento. A Igreja reconhecia que a vida celibatária não era um comportamento possível para a maioria dos indivíduos. Poucos conseguiam abrir mão das satisfações e desejos imediatos para seguir o estreito caminho de renúncia e amor a Deus. Somente aqueles capazes de renunciar as paixões e gozos da vida terrena estariam em condições de viver segundo a doutrina cristã. Por essa razão, o restante dos mortais dependia desses poucos para ganhar a salvação. Os santos intercederiam junto a Deus pelos pecadores.
Não quer dizer que os representantes da Igreja Católica de fato praticassem o celibato e uma vida de  privações. Antes do Concílio de Trento, era muito comum o casamento clandestino de padres, o envolvimento em questões políticas, econômicos e mesmo a participação em atividades de guerra. A Igreja era uma classe social que defendia os seus interesses e os indivíduos optavam pela carreira religiosa como forma de alcançar um título social, equivalente ao de nobreza. Os decretos e decisões tomadas durante o Concílio de Trento são uma resposta às críticas e questionamentos do movimento protestante.  Entre as reformulações, o protestantismo pregava um Deus mais próximo do indivíduo comum, o alcance da salvação sem a necessidade de intermediários e do pagamento de indulgências e, ao mesmo tempo, a vida doméstica como o espaço ideal para o exercício diário de vivência dos preceitos cristãos e glorificação de Deus.  
O protestantismo leva a Igreja Católica a reformular sua doutrina e grande parte das mudanças é decidida durante o Concílio de Trento, um dos mais longos empreendidos pela Igreja. Entre  as novidades, o casamento é elevado à condição de sacramento. Ao fazê-lo a Igreja resolve dois problemas: a) torna o cristianismo uma doutrina acessível ao homem comum; pois o casamento passa a ser interpretado como um celibato de segunda ordem, que permite praticar o sexo com fins de procriação; e b) ganha condições de interferir nas questões econômicas e políticas que eram resolvidas pelos nobres por meio de contratos de casamento. Para casar, os nobres ficavam obrigados a consultar a Igreja, que verificava a existência ou não de relação de parentesco até o terceiro grau entre os pretendentes.
Nesse mesmo momento, o casamento ganha um ingrediente novo, o amor. Somente eram legítimas as uniões resultantes do amor, construídas em prol de um sentimento puro e eterno, quase uma mácula do divino no humano. Os casamentos por interesse, exclusivo dos nobres, eram reprovados e rechaçados.  Aqui começa uma característica particular da sociedade Ocidental que foi a única, segundo Anthony Giddens, a fazer do amor apaixonado a base do casamento.  A única a usar um sentimento impulsivo e instável como fundamento de um contrato com implicações para o resto da vida do indivíduo.
Não foi fácil para a Igreja convencer os nobres de que estava autorizada a legislar e interferir em questões econômicas e políticas. Não foi sem resistência que conquistou a condição de falar sobre as uniões estáveis, impor restrições, abençoar ou proibir casamentos.  Foram tantas as brigas, que o rei Henrique VIII rompeu com a Igreja e casou-se com Ana Bolena. A Inglaterra tornou-se protestante.
Se a Igreja deu sua contribuição para a fusão do casamento com amor, veio somar a afinidade eletiva dessa modalidade de união com o estilo de vida e visão de mundo da classe ascendente, a burguesia. O processo de domesticação do amor e do sexo iniciado pela Igreja Católica, de migração para os estreitos limites do casamento de impulsos instintivos e emocionais, foi concluído pela conduta da burguesia e a organização social que surgiu nas cidades.
A burguesia é urbana, reside em casas menores, com poucos empregados domésticos, possui horários, disciplina de compromissos diários.  Junto com ela, vem o proletário,  despossuído e ocupado em longas e estafantes rotinas de trabalho. O modo de vida da nobreza passa a ser  criticado em razão do luxo, das orgias, dos custos para o Estado e também porque a arte de guerrear não era mais tão necessária num mundo onde as disputas se davam por rotas comerciais, pelo desenvolvimento tecnológico, pelo aumento da produtividade. A nobreza perdia sua função e conseqüente importância.  No ambiente restrito da casa, homem e mulher precisam dividir responsabilidades por educar os filhos e gerenciar os negócios da família. A oficina é uma extensão da casa do burguês. Nesse momento, o casamento não é mais um contrato diplomático entre nobres, mas um contrato com características econômicas suavizadas, onde o amor passa a ser o cimento, a união entre duas pessoas para resolver problemas domésticos, relacionados ao dia a dia, contando com a bênção da Igreja.
E onde está o terceiro elemento de nossa história, o sexo? Apenas recentemente o sexo foi adicionado ao casamento como um ingrediente necessário. Surge nos anos 60, com o ingresso da mulher no mercado de trabalho. Conforme ela ganha independência econômica passa a reivindicar a realização sexual como fator fundamental para a felicidade e durabilidade do casamento.
Ma o fato dos três elementos terem se aproximado não levou a uma domesticação definitiva do amor e do sexo.  A sociedade Ocidental segue numa tendência a racionalização das emoções, impulsos e desejos, no entanto nada impede os influxos, as crises e contínuas mudanças que questionam a inclusão desses ingredientes num contrato que responde a exigências práticas. O amor ao tornar-se ingrediente do casamento não deixou de ser o amor. Mas o que é o amor para a Sociologia, como defini-lo? Ele possui uma natureza? Não é um construção social?
Definir o casamento é fácil, pois trata-se de uma instituição e como tal possui regras. Também não é difícil definir o sexo, pois é um impulso natural, um instinto. Mas e o amor? Como defini-lo? Há dois autores que nos ajudam a resolver esse problema: Simmel e Durkheim. O primeiro tratou das díades e o segundo das relações de solidariedade do tipo mecânica e orgânica. O amor é uma díade onde vigoram relações do tipo mecânicas. O que isso quer dizer?
A díade é uma estrutura social tão simples que depende completamente do outro para existir. Basta que um dos integrantes renuncie a união para ela dissolver-se. Por isso, a questão da existência é uma preocupação constante e que persegue os participantes de forma muito mais intensa que nos grupos maiores, onde a saída de um dos membros não significa sua extinção. A díade é um grupo que se sente o tempo todo ameaçado e insubstituível.  O que dá origem a uma díade pode ser um acordo, um segredo, um objetivo comum, mas possui uma natureza muito diversa “daquela que seria possível num grupo maior, ainda que fosse de apenas três participantes” (Simmel).
Mas o que une o casal, qual é a natureza das relações? Num grupo tão fechado e pequeno podem existir laços de solidariedade orgânica, mas serão raros. Aqueles definidos por afinidades e semelhanças serão mais fortes e comuns. Tendem a excluir todos que sejam diferentes. Cada um se sentirá confrontado apenas com o parceiro, e não com a sociedade que lhe fica sobreposta. Agem fechando as fronteiras da díade ao mundo externo, onde pouco interessa o que pensa a grande sociedade sobre suas condutas, apenas o juízo do outro importa.  Segundo Simmel, a estrutura social, aqui, repousa igualmente sobre os dois, sendo que o desvio de qualquer deles significaria a destruição do todo.
O casal apaixonado tende a fechar-se para o mundo a fim de proteger-se das ameaças externas. Por essa razão, Freud dizia que, nos extremos, Eros e Thanatos se encontram. O rompimento de um dos elementos da díade é interpretado não apenas como a extinção do grupo, mas do próprio indivíduo, já que o ambiente social lhe é subitamente suprimido. Ele precisará de tempo e esforço para situar-se novamente no ambiente social externo.  
Enfim, o amor é o resumo de um conjunto de dilemas e emoções que surgem das relações da díade. Possui, em razão de suas características, um caráter anti-social e disruptivo. Ao contrário das outras relações embasadas na complementaridade das qualidades individuais, sendo assim mais expansivas e produtivas; o amor é socialmente improdutivo e restritivo.  Por conta dessas características não favorece o casamento, não contribui para suas finalidades que são muito instrumentais e econômicas. Sempre foram. Tanto o ímpeto sexual quanto o amor apaixonado não cabem nos estreitos limites do casamento. Por acaso foram acrescidos a instituição, mas dificilmente podem permanecer nela. A violência que surge a partir das relações amorosas, os freqüentes casos de assassinatos ou agressões sofridos por uma das partes ou a trama para assassinar alguém que dificulta a união do casal são exemplos de como o amor concorre com a sociedade externa. O casamento duradouro e produtivo está assentado em relações de outro tipo que não a do amor apaixonado.