segunda-feira, 7 de março de 2011

Sem tempo para as anáguas

Quem se lembra das anáguas? Minha mãe abandonou vários vestidos porque, quando andava, deixavam a anágua aparecer. Assim como também passou a não falar com amigas que propositalmente permitiam a rendinha da anágua vir a público. Não eram confiáveis. Essa peça íntima simplesmente sumiu do guarda-roupa feminino. Não encontramos uma última unidade nem mesmo em lojas de departamento ou em armarinhos antigos. Restou a lembrança daquele tempo quando não se permitiam roupas transparentes, em que o pudor era uma qualidade necessária no mundo feminino. Uma mulher sem pudor perdia a honra, que era o capital social mais importante que possuía. Não bastavam modos recatados, era preciso esbanjar a honra, parecer ter pudor, daí a função das anáguas. É como hoje, não basta ser magro é preciso esbanjar magreza com fotos no Facebook e Orkut ou reclamando em público de suas horas em academia.

Rendas na barra da anágua
As anáguas contribuíam para disfarçar a musculatura do bumbum e coxas, mas também tinham seu charme. Na barra, se costuravam românticas rendinhas que eram um toque de sensualidade revelado somente entre quatro paredes, depois de vencidas todas as etapas da sedução. Eram tão sensuais as rendinhas que a moda do século XXI fez uma releitura delas – foram colocadas propositalmente e descaradamente na barra das saias. Veja bem caro leitor, não são saias com rendas, simulam anáguas com rendas, como se fossem uma sobreposição.

Desta forma, assim como as alças dos sutiãs finalmente vieram a público – mal sabe o mundo masculino durante quantos séculos as mulheres sofreram com roupas que deixavam a alça do sutiã aparecer – as anáguas também ganharam as ruas e a luz do dia. Acontece que a sensualidade exposta acaba menos sensual, pois o desejo surge da fantasia e não do que os olhos vêem.
Moda do século XXI reedita as anáguas
Mas contei toda essa história das anáguas para perguntar por que nossa sociedade precisa tanto exibir sensualidade? Por que a sensualidade tornou-se pública? Saiu da intimidade e passou a ser exposta em vitrines, outdoors, catálogos, TVs?... De forma que não restou mais nenhum susto em relação à nudez.

Quando eu era criança, na época do Carnaval, havia sempre uma expectativa em relação às roupas das passistas. Qual seria a ousadia naquele ano? Sempre achei que chegaria um momento que não sobraria mais nada para ser retirado. Me perguntava: quando a nudez vai acabar? E agora aconteceu, a nudez acabou. Não existe mais nudez no sentido de algo a ser revelado. Somos a sociedade que precisa de artifícios para a sensualidade, que precisa retornar ao passado e buscar seus ícones de sensualidade. Mas não é só a nudez que acabou, a honra feminina deixou de ser um valor.

Anáguas a mostra no séc.XXI
A honra tinha um custo para a mulher e também para o homem, em outras palavras, não era fácil manter a honra, exigia grande dispêndio de tempo e para não dizer de dinheiro. Para proteger sua honra a mulher adiava qualquer aproximação até ter certeza de que a pessoa ao seu lado era mesmo o grande e único amor de sua vida. Desta forma, havia todo um ritual de sedução, de conquista e de resistência: o flerte, o pegar na mão, o segurar na cintura.... Todo um ritual que foi sendo esvaziado e substituído por praticidade e funcionalidade.

Não quero dizer que as mulheres dos anos 50 e 60, antes da revolução sexual, eram mais felizes. Não estou querendo reviver a censura à sexualidade, apenas digo que a liberação não precisava vir acompanhada necessariamente do exíguo tempo que desprendemos hoje conhecendo o outro. A praticidade e a funcionalidade do mundo moderno estenderam-se a relação a dois. Raramente saímos com outra pessoa somente para conversar. Raramente temos tempo para seduzir alguém com olhares e gestos, vai-se direto ao assunto. E o assunto é o que interessa.

É assim que não há mais tempo a se perder com anáguas. É preciso deixar a mostra, conhecer rápido, falar o que se deseja, nada de insinuar. Preocupações mais importantes que as conquistas e jogos amorosos nos ocupam: o trabalho, a urgência da empresa, a concorrência, a estrema especialização, o conhecimento infindável... A honra não é mais um valor para a mulher, ela pode ir ao mercado de trabalho ganhar dinheiro e comprar honra. Aliás, outras qualidades se associaram a honra, o reconhecimento do mercado de trabalho, a remuneração pelo trabalho prestado, os artifícios de status resultantes do cargo.

terça-feira, 1 de março de 2011

Idéias sobre o livro de Stone

Lawrence Stone
Estava lendo "A transformação da Intimidade" de Giddens e ele citou Lawrence Stone: "Família, sexo e matrimônio na Inglaterra 1500-1800". Consegui encontrar o livro, em espanhol, numa livraria em Sampa. Estou gostando muito e será muito útil no meu trabalho de pesquisa. Há dados interessantes como a descrição que faz do matrimônio na baixa Idade Média. Embora tenha lido muito sobre esse período, ainda não havia dado conta da relação que ele estabelece entre propriedade, patriarcado e matrimônio.


Numa sociedade sem a presença do Estado, a segurança da família é a propriedade. Ela garante não apenas prestígio, poder, ganhos econômicos, mas também a segurança física. Quanto maior o número de pessoas que vivem em torno da propriedade, maior o poder do nobre, pois maior é a quantidade de braços para a guerra. Nesse cenário, o matrimônio não pode ser uma questão individual, pois tem implicações para todos os entes familiares.

Tudo muda de figura quando a propriedade deixa de ser o centro da organização da vida social. O patriarca é esvaziado de seu poder pelo Estado e pela Igreja. Outras alternativas de renda aparecem que não apenas aqueles provenientes da propriedade rural. A sociedade começa a abrir espaço para a individualidade em conseqüência de mudanças na transmissão de herança, na subordinação dos filhos aos pais e na defesa da propriedade privada, além de um processo de urbanização crescente que esvazia o poder patriarcal. Essas mudanças possibilitam a vontade individual e também o matrimônio baseado em afinidades e afeto.

No entanto, nesse percurso histórico há questões que permanecem em aberto, como o próprio Stone reconhece. Ele diz que durante o período patriarcal, que ele data anterior ao século XVI, as relações entre pais e filhos e marido e mulher eram muito estúpidas e violentas. Descreve casos de agressão, que para ele, não eram casos isolados, mas constantes. Guerras, doenças e o alto índice de mortalidade infantil impediam que os pais guardassem muito zelo para com os filhos. Ele credita à fragilidade da vida humana em geral o baixo sentimento de estima que havia entre pais e filhos, ou entre marido e mulher. Em geral, as pessoas casavam-se várias vezes, pois enviuvavam novas. A média de vida era de 32 anos. Os filhos dificilmente eram criados pelos pais, mas entregues a amas, avôs e tios, em razão também da morte prematura.

A partir do século XVII, essas relações passam por uma transformação. Emerge a família nuclear burguesa com a dedicação da esposa ao lar, o carinho dos pais aos filhos e o cuidado com a educação das crianças. Qual é a fonte destas mudanças? A morte deixou de ser um fato inevitável, aumentou-se a expectativa de vida das crianças e dos adultos? É aqui que sua análise fica a desejar. Ele enumera razões ideológicas, religiosas e econômicas sem aprofundar em nenhuma. Particularmente, acho suas razões ideológicas fracas: liberalismo (John Locke) com sua defesa da propriedade individual e os direitos naturais do homem. E as religiosas são conhecidas, o protestantismo com seu organizar o mundo, exigindo maior atenção dos pais a educação dos filhos com conseqüências também sobre a introspecção: “O puritano estava constantemente em busca de sua alma, realizando um inventário moral e espiritual para descobrir se estava ou não entre os eleitos por Deus” (Stone, 1990: 127). Quanto as econômicas, as mudanças estavam basicamente no surgimento da propriedade privada tal qual a conhecemos hoje e do capitalismo com suas novas oportunidades, além da alfabetização de uma parcela maior da população.

“Na raiz de todas as mudanças mais importantes dos fins do século XVII e do XVIII se encontra uma progressiva reorientação da cultura para a busca de prazer no mundo, mais que desejar a gratificação para o seguinte. Um aspecto foi a crescente confiança na capacidade do homem para dominar o meio ambiente e moldá-lo para seu uso e benefício... esta reorientação das metas humanas foi possível graças a mudança de uma atitude de resignação passiva diante da enfermidade, a exploração, a pobreza e a miséria como parte da vontade de Deus e que eram atenuados somente pela promessa de recompensa após a morte” (idem:131).

Entre a descrição que ele faz num primeiro momento para as mudanças que aponta um século depois há um gap. O que aconteceu com o homem que espancava mulheres e filhos, torturava os servos, e não se submetia ao poder central da Igreja e do Estado? Não são apenas mudanças de ordem econômica, mas mudanças de conduta. As justificativas e explicações de Stone são insuficientes para a transformação que  aponta.

Sentimos falta de um Nobert Elias, que descreva com riqueza de detalhes o jogo de relações entre os indivíduos, as pressões e controles sociais que acabam levando a alterações na estrutura da personalidade, a maior auto-controle sobre as pulsões, instintos primários e emoções. Creio que há um conjunto de mudanças que levam a transformações na intimidade da família, que deve ser tratado como processos casuais e independentes que se somam. Não vou descrevê-los, apenas enumerá-los para que outro dia possamos voltar a este assunto:

a) O enfraquecimento da nobreza rural e de seus valores e de suas formas de convivência: heroísmo, violência física e patriarcalismo. O fortalecimento da nobreza de corte com conseqüente avanço das regras sociais palacianas.

b) O surgimento dos jogos de amor como uma forma de entretenimento na vida social. O amor marginal, excluído da vida familiar.

c) O fortalecimento da burguesia e a reinvenção da família. A vida torna-se urbana, casas menores, menor número de criados, presença da esposa na educação dos filhos.

d) A conduta moral burguesa como um distintivo social em relação a conduta do nobre, tido como desregrado, imoral e perdulário.

e) Esvaziamento do poder patriarcal em favor da Igreja e do Estado. Centralização das normas do matrimônio nessas instituições.