sexta-feira, 12 de março de 2010

O que está proibido é o desejo sexual

É uma evidência do narcisismo assexualizado da sociedade brasileira contemporânea a censura ao comercial da Devassa. Tomei conhecimento do caso pelo blog do publicitário Lenadro Wirz (mardecoisa.blogspot.com) e resolvi comentá-lo aqui, onde o espaço é maior. A pergunta imediata que ocorre é por que? Por que censurar um comercial que é semelhante a cem mil outros comerciais de cerveja? Mulher bonita e quase pelada, cerveja gelada, um bando de homem embasbacado, qual a novidade? Por que o comercial da Devassa é mais ofensivo a imagem da mulher e estimula, mais que os outros, o consumo excessivo de álcool? Implicância pura e simples do Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária?

Creio que não. Há um elemento nesse comercial que o faz diferente dos outros: fala de uma mulher que é sensual, que estimula a imaginação e seduz aqueles que a observam. Transeuntes, vizinhos e até mesmo duas mulheres param para olhá-la. Ela se sabe observada pelo fotógrafo do prédio em frente e insinua-se esfregando-se no vidro, enquanto a lata gelada escorrega pelo seu corpo. Na fotografia que interrompe o filme, há desejo em seu olhar. Paris Hilton, atriz que interpretada a personagem, está até mais vestida que outras loiras de comerciais de cerveja. Acontece que nos outros comerciais, as loiras são apenas bonitas, nuas e inatingíveis. A cerveja só uma bebida.

Corpos dourados não transmitem, necessariamente, apelo sexual. Na televisão brasileira, não há nada mais comum e explorado que a nudez em todas as cores. Diria mesmo que ela já não provoca nenhum impacto. O que causou a reação dos censores foi o apelo sexual do comercial. Isso é uma evidência de que, embora jornais, revistas e televisão divulguem diariamente imagens de corpos perfeitos, não é a sexualidade o que desejam despertar. Trata-se apenas de um padrão de beleza aceito e explorado como produto. Quem persegue esse padrão também não visa atrair alguém, não é o desejo o que está em jogo, mas uma pura e inocente exibição narcísica. Do contrário, os outros comerciais, desde o banho das atrizes globais no comercial do Lux de Luxo até personagens de grifes infantis deveriam ser censurados. O que causou estranhamento no comercial da Devassa não foi a loira bonita e quase nua, foi a sua sensualidade. O que está proibido é o desejo sexual.

Agora imagine, caro leitor, quantos potes e potes de cremes dermatológicos são produzidos, quanto de fortuna não fazem as incontáveis clínicas de cirurgia plástica, sem contar o que se produz de roupas coladas a micro biquínis, tudo isso apenas para satisfazer nosso narcisismo e o jogos narcisistas em que nos envolvemos diariamente. Como diria Foucault, “o poder no Ocidente é o que mais se mostra, portanto o que melhor se esconde” (Microfísica do Poder, 2003:237). Parece que tudo esbanja sexualidade, desejo, juventude e prazer; mas estamos apenas consumindo esses valores. Podemos não ir além da aparência. Não faremos mais sexo, ou experimentaremos paixões, ou nos encontraremos com nossos impulsos e vontades. Podemos ficar satisfeitos com os potes de creme e parar por aí.

É isso que a indústria de estética deseja? Não creio. Concordo com Foucault quando diz que o poder não é um ator unificado com uma ação orientada para perpetuar-se. O poder está assentado em micropráticas cotidianas que têm como efeito tornar o corpo mais dócil. Todavia, o poder não é hegemônico, está sujeito a constante microcontestações e pode ser subvertido a qualquer momento.

quarta-feira, 10 de março de 2010

O narcisismo contemporâneo e a sexualidade


Não há amor sem individualidade. A afirmação parece óbvia e pressupõe o absurdo que alguém possa existir sem ser uma individualidade. Não é óbvia nem absurda. Somente para as sociedades ocidentais contemporâneas parece evidente que a toda pessoa corresponda uma individualidade. A Idade Média, por exemplo, é uma época em que os espaços para a construção da individualidade são restritos. A identidade do indivíduo é a família a que pertence, qualquer perda de prestígio e de poder que a família sofra, o afeta diretamente, não apenas em suas relações econômicas, mas também pessoais.

Quando ele pergunta quem sou eu, olha sobretudo para o passado de sua família, seu prestígio, suas propriedades e seus valores. O indivíduo está preso numa rede de relações que fixa seu futuro, sua profissão e com quem deve casar-se. O que o une o casal são deveres familiares e não afinidades ou afetividades. “Um casamento vantajoso eleva a posição do marido e a dos membros de sua linhagem: conserva-se preciosamente seu traço nas genealogias ‘casa’” (Dominique Barthélemy, A vida privada nas casas aristocráticas da França feudal, 2009:129). O amor, na Idade Média, só é possível fora do casamento, como um sentimento pagão e marginal. O amor cortês dos trovadores não existe no matrimônio, desenvolve-se nas relações extraconjugais. É vivido principalmente pelos jovens cavaleiros excluídos do direito de contrair casamento - direito restrito ao primogênito. Sendo assim, o amor é uma contravenção, uma insubordinação contra as regras familiares e religiosas e, portanto, um exercício de individualidade.

A comparação com a sociedade medieval é interessante, pois ela é o oposto do mundo que experimentamos. Se a Idade Média é um período em que o indivíduo tem pouca liberdade para fazer suas escolhas e vivenciar experiências fora das regras familiares e religiosas, no mundo atual há uma exacerbação da individualidade para o extremo do narcisismo. Não que o indivíduo contemporâneo tenha sido esvaziado de suas raízes culturais, mas os parâmetros de sua identidade são cada vez mais estéticos e de consumo. Não sei exatamente quais são as consequências sobre as relações amorosas, mas acredito que há um abandono da sexualidade, uma impaciência com o jogo amoroso em favor de outras realizações que traduzam status e poder.

Encontrei evidência empírica disso. Não é bem uma evidência, mas um indício. Na pesquisa que Datafolha realizou, 10% dos casados disseram que não fazem sexo. Desses, 25% têm entre 25 a 45 anos, ou seja, estão numa idade que seria de plena atividade sexual. Interpretando o caso, a terapeuta Tai Carvalho disse: “Fico perplexa com a quantidade de casais que trocam o sexo pela relação com o consumo, o trabalho, a boa forma, as conquistas materiais. Estão atrás de viagens, da reforma da casa, da escola para os filhos. Esse é o erotismo deles” (Folha de S. Paulo, 21.02.2010). Acho 25% de 10% um universo muito pequeno para qualquer afirmação, mas nos incita a pensar se há ou não uma migração do desejo sexual para outras realizações, se não seria reflexo de um extremo narcisismo.

O jornalista comenta que num País sensual, o jovem abriu mão da sexualidade. A aparência de corpos dourados comunicam sensualidade, mas também podem ser sinônimos de narcisismo, que é justamente o oposto de sexualidade. Observo que ocorre um crescimento das academias, das clínicas de dermatologia, das cirurgias estéticas, dos cremes rejuvenescedores e mesmo de objetos de consumo que traduzem jovialidade. Queremos fazer mais sexo em função disso? Creio que não. Estamos apenas preocupados com o que vamos encontrar no espelho e o sentido do que vamos transmitir nos grupos que participamos. A velhice não é um atributo desejado e valorizado em nossa sociedade. Tem um peso não apenas nas relações individuais, mas mesmo nas profissionais. Ser jovem e bonito é também ser bem sucedido. Associação absurda, mas muito natural nos dias de hoje.

Volto a falar sobre individualidade e amor num próximo post.

quinta-feira, 4 de março de 2010

O suicida e o homicida



Nelson Rodrigues afirmava que havia apenas dois tipos de pessoas: o homicida e o suicida. Disse só isso, não teorizou sobre o assunto, mas como sempre fazia repetiu mil vezes a mesma afirmação. Tinha certeza do que dizia.

Fiquei grilada: exagera. Deve haver gradações entre esses extremos. Mas se há apenas dois tipos, quem é o homicida e quem é o suicida?

O suicida não tem medo e o homicida só mata por medo. Ele não é o assassino, uma aberração desse tipo, mas possui ainda o medo do animal que investe com uma gana feroz sobre a presa como se a odiasse. Por medo ataca antes de ser atacado. Observo isso no cachorro, é capaz de matar alguém que sequer  vê. Simples medo.

O homicida gosta de viver e gostaria que sua vida fosse longa, previsível e presumível. É um tipo que quer segurança, família, emprego estável, salário no final do mês. É o bancário, funcionário público, contador, administrador, burocrata. Já o suicida é o contrário. Para ele a vida só tem sentido se for vivida em seus extremos: amor com paixão e sexo, esportes radicais, trabalho criativo, longas viagens sem destino... Não tem paciência para fazer sempre o mesmo trabalho, beijar a mesma mulher e ter horários. É o amante não o marido. É o argonauta. Para ele, “navegar é preciso, viver não é preciso”.

Dirá o leitor que estou atraída pelo segundo tipo de ser humano. Engana-se. Penso mesmo que nesses personagens, inventados por Nelson Rodrigues, há o melhor do ser humano. Como se fossem dois instintos básicos que ainda permanecem apesar de todo o processo civilizador.

A virtude do suicida é o risco e não existe vida sem um mínimo de risco. Podemos minimiza-lo, mas jamais eliminá-lo. No homicida, a coragem e a persistência. Como é possível construir uma casa, uma empresa, uma sociedade sem coragem e persistência? Desse lado estão todas as pessoas que se dedicam, apesar de todas as diversidades, a recomeçar todos os dias e são elas que vão aos poucos deixando realizações. Para elas, o ideal que atrai é o da igualdade. Do outro lado, os apaixonados e conquistadores. São eles que vão para o espaço, que atravessam oceanos, que estão na linha de frente de qualquer exército. São os desbravadores, os sertanejos que abrem a mata fechada para fazer passar o trem e a estrada. Seu ideal é a liberdade.

Penso que Nelson Rodrigues concordaria comigo. Não tinha preferência por nenhum dos personagens. Era seu interesse as duas modalidades de tragédias: o que mata por amor e o que é capaz de morrer por amor.