sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A civilização e a domesticação do amor em Austen e Brontë


Os personagens de Jane Austen surpreendem pelo tanto que são comedidos em suas emoções, polidos em suas maneiras, assexuados e cercados por constantes obrigações sociais. As menores atitudes - como um olhar, o tom de voz, o enrubescer - estão carregadas de significado e são controladas pelos mais próximos. Seus personagens experimentam um autocontrole tão rigoroso que fiquei em dúvida se poderíamos das descrições de Austen deduzir as regras de conduta que orientaram a sociedade inglesa na passagem do século XVIII ao XIX. Seriam reflexos dos ideais religiosos protestantes ou deveriam ser tratadas como simples abstrações de um ideal conduta desejada pela autora?

Resolvi ler outra autora do mesmo período e da mesma corrente literária. Parti para Emily Brontë, O Morro dos Ventos Uivantes. E que surpresa ao deparar com personagens e descrições da sociedade completamente avessas aquelas de Jane Austen! Qual a razão?

Austen fala das relações cotidianas e familiares da nobreza inglesa. Alguns de seus personagens não são nobres, mas é sobre as relações da nobreza com a classe média ascendente, a comunicação entre integrantes dessas duas classes, que a maioria dos conflitos que norteia sua obra se desenrola. Já Emily Brontë volta-se para a sociedade distante dos círculos de convivência com a nobreza, focaliza o modo de vida daqueles que residiam no campo e que pouco contato mantinham com os salões e teatros onde se desenvolviam os hábitos sociais mais sofisticados. Seus personagens vivem isolados nas grandes propriedades rurais e o a maior proximidade que experimentam com o mundo civilizado e citadino é a missa na capela do vilarejo.

Não participam, como os personagens de Austen, dos bailes, não se obrigam a manter uma rotina de visitas, jantares e outras obrigações sociais. Vivem mais em contato com a natureza e com os animais. É verdade que os personagens de Austen também residem no campo, mas estão continuamente em viagens para Londres – centro da civilização. Em Morro dos Ventos Uivantes, eles nunca saem do campo, não têm amigos ou parentes fora daquele ambiente.

A distância tão clara entre a vida social e as regras de conduta descritas por Austen e Brontë não resulta apenas de diferenças de estilo entre as autoras ou do objeto de suas descrições. Denuncia a visão de mundo dominante naquele período que apontava para qualidades do comportamento discrepantes entre o campo e a cidade, entre aqueles distantes do mundo civilizado e os outros que o construíam. É conhecido que a nobreza da corte (alta nobreza) mantinha certo desprezo pelo comportamento da nobreza provinciana (Balzac, Nobert Elias). Quanto mais próxima a convivência com o rei e sua corte, maiores eram as exigências sobre os modos de vestir, comer, falar, caminhar... A sofisticação de modos e linguagem conferia status ao indivíduo e facilitava estabelecer amizades, obter novos convites para eventos sociais, manter-se presente no ambiente onde o poder e o prestígio se distribuíam. Por essa razão, podemos dizer que não se trata de construções abstratas das duas autoras, mas reflete a visão que a classe média ascendente e a nobreza tinham das distâncias que separavam esses dois mundos e do que era portar-se de maneira civilizada.

As diferenças no comportamento dos personagens e da vida social que participam, entre as duas autoras, resultam de cortes distintos sobre a realidade social, no entanto complementares de uma visão de mundo dominante naquele período e que pode ser lida em outros autores.

Muitas das características do personagem Heathcliff (Morro dos Ventos Uivantes, Emily Brontë, 1847) aproximam-se de Drácula (Drácula, Bram Stocker, 1897). Não são obras próximas, cinqüenta anos as separam. No entanto, não acredito que as semelhanças sejam acasos. Drácula e Heathcliff são acometidos por um amor fulminante e impossível. Perdem a mulher de suas vidas por amor. Não é uma morte natural – claro suicídio no primeiro caso e morte provocada no segundo. A partir deste momento, eles se isolam do mundo, rompem com as regras morais católicas e praticam a maldade e a violência de maneira gratuita. Do amor passam ao ódio, que alimentará a vingança impiedosa que empreendem. Se transformam numa espécie de monstro que vaga no limite entre o mundo real e o sobrenatural. É a paixão desmedida, incontrolada, a incapacidade de Drácula e Heathcliff de dominarem suas emoções, de racionalizarem seus sentimentos, que os levam para o crime e que os aproximam da selvageria e bestialidade.

Se fosse possível traçar uma linha imaginária, de um lado estariam a razão e os sentimentos religiosos e do outro, a insensatez e os impulsos demoníacos. Em Brontë e Bram Stocker, o amor é um sentimento que não cabe nas convenções e instituições sociais estabelecidas. De tão desmedido torna suas vítimas insanas e as enclausura numa dimensão não humana, que impossibilita viver em paz. Essa definição diabólica do amor também pode ser lida nos textos médicos e religiosos do período. Para a Igreja, amar alguém mais que a Deus era pecado e impedia o indivíduo de conquistar a vida eterna. A Igreja Católica defendia a renúncia completa ao mundo – nada mais terreno que desejar realizar-se no outro. No protestantismo, não se trata de renunciar ao mundo, mas de viver os ideais cristãos no cotidiano, fazer uso das coisas do mundo para servir e glorificar a Deus. Os prazeres terrenos não podem ser experimentados como fins em si mesmos, devem servir como instrumentos para edificar um mundo ordenado e coerente com a vontade divina (Cf. As fontes do Self, Charles Taylor). Desse modo os sentimentos precisam ser moderados, distanciados, domesticados e capazes de caber nas rotinas da vida familiar. Como as pessoas devem se comportar na visão protestante é exatamente (por coincidência ou não) como são descritos os personagens de Jane Austen.

Eles não se parecem em nada com Drácula e Heathcliff. São extremamente racionais, educados, contidos e capazes de administrar situações estressantes e conflituosas conduzindo-as para finais felizes. É precisamente pela habilidade que possuem em gerenciar a expressão e a vazão de suas emoções que evitam que as situações que atravessam desemboquem na tragédia, no suicídio, no crime e na infelicidade.

Agora podemos resumir a visão de mundo desses três autores: Stocker, Austen e Brontë.

O amor e qualquer outro sentimento incontrolado só são possíveis num mundo que ainda não se civilizou. Persistem em pessoas que vivem isoladas nas propriedades rurais, distantes da sociedade e em contato com a natureza. Essas pessoas são quase selvagens e o sentimento delas também. A paixão desenfreada de Heathcliff por Catherine ou de Drácula por Mina não poderia existir nos salões ingleses com seus passos sincronizados e gestos medidos. A estupidez, a raiva, o ódio, a vingança, a paixão indomável são características do selvagem que ainda habita o homem e a porta de entrada para o demônio.