terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Aprender a perder tempo



 
A modernidade inventou o hábito de cronometrar o cotidiano. Refiro-me a estranha mania de colocar horário para tudo: para acordar, para trabalhar, para aprender, para amar, para lanchar... É verdade que sempre houve certa divisão de rotinas, mas sem a precisão das horas. Basta lembrar que Galileu estabeleceu as primeiras relações entre espaço e tempo no século XVI. Em 1595, ele descobriu a Lei do Pêndulo, que contribuiu para o avanço dos relógios mecânicos, embora os primeiros relógios fossem artigos de luxo, verdadeiras jóias e símbolos da alta aristocracia. Eram usados mais por status que por sua utilidade.

O fixar tempo para as mínimas ações humanas surge da necessidade de tornar a produção eficiente. Produzir o máximo no menor tempo é um preceito que orientou a revolução industrial e que serviu para regular as relações econômicas e produtivas, mas que não deveria se estender, como ocorre atualmente, a todas as esferas da vida, inclusive a sentimental.

Hoje, o tempo passou a servir de medida não só para observar quantidade de objetos produzidos, mas também para avaliar realização pessoal. Somos mais ou menos realizados conforme consigamos conquistar um bom emprego, comprar uma casa, ter um filho, estabelecer uma relação estável com outra pessoa, concluir os estudos... em prazos previstos. Nos tornamos responsáveis por fechar certos ciclos da vida na idade convencionada como correta, não importam os acasos, as diferentes experiências, os desejos e valores que nos orientam. Certos padrões de idade e realização se fixaram como corretos e as pessoas são responsabilizadas, individualmente, caso não os cumpram.

É preciso alcançar determinados resultados na vida pessoal, do contrário, por alguma razão o sujeito será menos que o outro, seja porque não soube aproveitar oportunidades, gerenciar emoções e desejos, superar fraquezas, ser persistente e disciplinado, fazer as melhores escolhas, enfim, ser eficiente na esfera privada. Desta forma, se o tempo foi uma variável relacionada à eficiência e produtividade no mundo econômico, tornou-se um importante indicador para avaliar se o indivíduo soube bem conduzir sua vida pessoal para uma situação estável.

Ao tornar-se uma medida aplicável a qualquer dimensão da vida, o tempo fez aumentar a auto-exigência, a auto-regulação, sobre domínios que não temos completo controle ou que não permitem padronizações. Como posso saber quando vou me apaixonar? E como pode ser minha a responsabilidade pelo prazo em que essa paixão vai durar? E por que sou mais ou menos apaixonado conforme minha relação dure mais ou menos? Como diria Vinícius de Moraes, há relações que “são eternas enquanto duram”. A experiência do que vivemos e como, e a avaliação se valeu à pena ou não são individuais; não são passíveis de padronização.

Ora, mas se passamos a avaliar nossas realizações pessoais pela variável tempo, somos também mais ou menos eficientes conforme venhamos a concluir ou não os necessários ciclos da vida nos prazos previstos. Eficiência passa a ser um conceito aplicável a esfera privada. Dessa associação decorre uma terceira, tão estranha quanto, a de tornar eficiência sinônimo de felicidade. Nos acostumamos a pensar que pessoas realizadas são pessoas felizes.

Para superar esta confusão, precisamos ter claro que o controle do tempo é uma estratégia para disciplinar o indivíduo. Contar o tempo que o operário leva para desenvolver certa tarefa, por exemplo, é uma forma de impedir que ele se disperse em conversas e devaneios. Aplicado como medida a dimensão privada de nossas vidas, o tempo funciona como autocontrole, com um resultado disciplinar ainda mais rígido e eficiente que qualquer controle externo, pois passa a ser realizado pelo próprio indivíduo e se estende a sua intimidade, aos seus pensamentos, sentimentos e emoções. Regula suas escolhas mais particulares, num nível de profundidade que seria impossível de ser penetrado pelas instituições.

Como o Estado pode dizer como devemos amar, por quanto tempo e se é correto ou não nos entregarmos a uma paixão avassaladora e doentia? A Igreja até pode fazer recomendações, mas que poder ela tem para alterar suas escolhas? Ocorre que, mesmo sem qualquer força coercitiva externa, olhamos para o tempo que regula nossas vidas e pensamos: “É melhor acabar agora esse relacionamento, ele já está atrapalhando o meu trabalho. Estou perdendo tempo demais com essa pessoa”. E corremos para a estabilidade do casamento antes que seja tarde demais.

O tempo é, assim, uma fonte contínua de ansiedade por cumprir prazos e exigências colocados principalmente por aqueles que nos são mais próximos e caros: amigos, parentes, vizinhos, colegas de trabalho. O tempo tem um peso direto sobre a identidade do indivíduo, a imagem que faz de si mesmo, e o prestígio que goza junto aos grupos de que participa. Por isso, é muito difícil para qualquer pessoa romper com a medida de tempo e experimentar sua vida sem qualquer preocupação com o resultado e quando atingi-lo. A atitude mais comum é entregar-se a essa neurose coletiva.