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Lawrence Stone |
Estava lendo "A transformação da Intimidade" de Giddens e ele citou Lawrence Stone: "Família, sexo e matrimônio na Inglaterra 1500-1800". Consegui encontrar o livro, em espanhol, numa livraria em Sampa. Estou gostando muito e será muito útil no meu trabalho de pesquisa. Há dados interessantes como a descrição que faz do matrimônio na baixa Idade Média. Embora tenha lido muito sobre esse período, ainda não havia dado conta da relação que ele estabelece entre propriedade, patriarcado e matrimônio.
Numa sociedade sem a presença do Estado, a segurança da família é a propriedade. Ela garante não apenas prestígio, poder, ganhos econômicos, mas também a segurança física. Quanto maior o número de pessoas que vivem em torno da propriedade, maior o poder do nobre, pois maior é a quantidade de braços para a guerra. Nesse cenário, o matrimônio não pode ser uma questão individual, pois tem implicações para todos os entes familiares.
Tudo muda de figura quando a propriedade deixa de ser o centro da organização da vida social. O patriarca é esvaziado de seu poder pelo Estado e pela Igreja. Outras alternativas de renda aparecem que não apenas aqueles provenientes da propriedade rural. A sociedade começa a abrir espaço para a individualidade em conseqüência de mudanças na transmissão de herança, na subordinação dos filhos aos pais e na defesa da propriedade privada, além de um processo de urbanização crescente que esvazia o poder patriarcal. Essas mudanças possibilitam a vontade individual e também o matrimônio baseado em afinidades e afeto.
No entanto, nesse percurso histórico há questões que permanecem em aberto, como o próprio Stone reconhece. Ele diz que durante o período patriarcal, que ele data anterior ao século XVI, as relações entre pais e filhos e marido e mulher eram muito estúpidas e violentas. Descreve casos de agressão, que para ele, não eram casos isolados, mas constantes. Guerras, doenças e o alto índice de mortalidade infantil impediam que os pais guardassem muito zelo para com os filhos. Ele credita à fragilidade da vida humana em geral o baixo sentimento de estima que havia entre pais e filhos, ou entre marido e mulher. Em geral, as pessoas casavam-se várias vezes, pois enviuvavam novas. A média de vida era de 32 anos. Os filhos dificilmente eram criados pelos pais, mas entregues a amas, avôs e tios, em razão também da morte prematura.
A partir do século XVII, essas relações passam por uma transformação. Emerge a família nuclear burguesa com a dedicação da esposa ao lar, o carinho dos pais aos filhos e o cuidado com a educação das crianças. Qual é a fonte destas mudanças? A morte deixou de ser um fato inevitável, aumentou-se a expectativa de vida das crianças e dos adultos? É aqui que sua análise fica a desejar. Ele enumera razões ideológicas, religiosas e econômicas sem aprofundar em nenhuma. Particularmente, acho suas razões ideológicas fracas: liberalismo (John Locke) com sua defesa da propriedade individual e os direitos naturais do homem. E as religiosas são conhecidas, o protestantismo com seu organizar o mundo, exigindo maior atenção dos pais a educação dos filhos com conseqüências também sobre a introspecção: “O puritano estava constantemente em busca de sua alma, realizando um inventário moral e espiritual para descobrir se estava ou não entre os eleitos por Deus” (Stone, 1990: 127). Quanto as econômicas, as mudanças estavam basicamente no surgimento da propriedade privada tal qual a conhecemos hoje e do capitalismo com suas novas oportunidades, além da alfabetização de uma parcela maior da população.
“Na raiz de todas as mudanças mais importantes dos fins do século XVII e do XVIII se encontra uma progressiva reorientação da cultura para a busca de prazer no mundo, mais que desejar a gratificação para o seguinte. Um aspecto foi a crescente confiança na capacidade do homem para dominar o meio ambiente e moldá-lo para seu uso e benefício... esta reorientação das metas humanas foi possível graças a mudança de uma atitude de resignação passiva diante da enfermidade, a exploração, a pobreza e a miséria como parte da vontade de Deus e que eram atenuados somente pela promessa de recompensa após a morte” (idem:131).
Entre a descrição que ele faz num primeiro momento para as mudanças que aponta um século depois há um
gap. O que aconteceu com o homem que espancava mulheres e filhos, torturava os servos, e não se submetia ao poder central da Igreja e do Estado? Não são apenas mudanças de ordem econômica, mas mudanças de conduta. As justificativas e explicações de Stone são insuficientes para a transformação que aponta.
Sentimos falta de um Nobert Elias, que descreva com riqueza de detalhes o jogo de relações entre os indivíduos, as pressões e controles sociais que acabam levando a alterações na estrutura da personalidade, a maior auto-controle sobre as pulsões, instintos primários e emoções. Creio que há um conjunto de mudanças que levam a transformações na intimidade da família, que deve ser tratado como processos casuais e independentes que se somam. Não vou descrevê-los, apenas enumerá-los para que outro dia possamos voltar a este assunto:
a) O enfraquecimento da nobreza rural e de seus valores e de suas formas de convivência: heroísmo, violência física e patriarcalismo. O fortalecimento da nobreza de corte com conseqüente avanço das regras sociais palacianas.
b) O surgimento dos jogos de amor como uma forma de entretenimento na vida social. O amor marginal, excluído da vida familiar.
c) O fortalecimento da burguesia e a reinvenção da família. A vida torna-se urbana, casas menores, menor número de criados, presença da esposa na educação dos filhos.
d) A conduta moral burguesa como um distintivo social em relação a conduta do nobre, tido como desregrado, imoral e perdulário.
e) Esvaziamento do poder patriarcal em favor da Igreja e do Estado. Centralização das normas do matrimônio nessas instituições.