Encontrei um amigo esta semana que acredita ter sido
acometido de um mal súbito: o amor. Procurou um analista para identificar a
origem do seu mal e como proteger-se da próxima paixão. A seu ver deve existir
algo de patológico no seu comportamento, passível de ser diagnosticado e
corrigido pela ciência. Me lembrei dos médicos no final do século XVIII que
também associavam o amor a doença. Quase lhe recomendei alguns autores daquele
período. Mas o incômodo do meu amigo sinaliza para um comportamento comum no
século XXI: a civilização das emoções, para usar uma expressão elisiana, vai
nos tornando cada dia mais regrados, contidos e concentrados no trabalho e
estresse da vida moderna. A vida, essa que nasce do lado de fora das janelas dos
escritórios, que tem cheiro, sabor e cor vai sendo substituída pela urgência
dos processos burocráticos, pela gravidade dos números sobre produtividade e
gestão, pelas infindáveis reuniões com propósitos ilustres mas sem resultados palpáveis...
Respondi ao meu amigo que se acalmasse, pois todo o seu sofrimento vinha de não
saber lidar com suas emoções e sexualidade. Se lhe servia do consolo, a maioria
de nós nunca atingirá este estado de nirvana. Faz parte da condição humana o
viver e o sofrer por amor. Com o tempo nos acostumamos que essas ondas virão, passarão
e virão novamente. Como crianças, vamos aprendendo a brincar com as ondas sem
acreditar na possibilidade da morte. Mas voltemos ao caso do meu amigo, pois
ele exemplifica bem o comportamento do homem civilizado e o risco que traz para
toda a espécie.
Convivo, diariamente, com pessoas que parecem feitas de
outro material, pois não sentem necessidades básicas e não se permitem emoções
comuns. Elas vivem em função do trabalho. O trabalho lhes protege de viver,
torna-se uma desculpa fácil e convincente para não se aventurarem no
desconhecido e imprevisível desafio de viver. Quando trabalhava no Banco do
Brasil, esses personagens eram muito comuns. Eu acreditava que se tratava de
uma patologia da Empresa. Fui para o serviço público e lá encontrei indivíduos
num grau patológico ainda mais avançado. Nelson do Vale, meu amigo e ator de
uma tese brilhante sobre o serviço público, já havia me alertado para esse
comportamento suicida. No Banco do Brasil, quanto mais ascendiam ao nível de
direção mais as pessoas se tornavam escravas do trabalho. Eram duas variáveis
diretamente correlacionadas. Se perguntassem a elas, por que entravam nove horas da manhã na Empresa e saiam às dez
horas da noite, responderiam que estavam obrigadas a esse comportamento
porque o gerente pediu, porque tinham um projeto com data para entregar,
porque havia uma resposta imediata a dar a um cliente etc. etc. etc. Numa
empresa, o indivíduo diz: eu sou obrigado a agir assim para não perder a minha
função. No serviço público, a resposta é: eu tenho uma causa nobre para
defender e quem me pede tem muito poder político para exigir. Nas duas
situações, a pessoa se deixou
escravizar. Por que razão, a pessoa não diz não? Não posso, estou indo embora
para casa. Não vou fazer pois ultrapassou os meus limites físicos. Inventa uma
desculpa esfarrapada, como uma dor de cabeça súbita, e vai pegar o filho na
escola para assistir a um filminho. Olha, que legal: sair às três horas da
tarde para ir ao cinema com o filho. Ninguém vai ver, pois você estará
escondidinho no escuro com seu filho, comendo pipoca e rindo gargalhadas. Mas por que ninguém ousa esse comportamento de insubordinação à lógica
racional burocrática do mundo moderno? Por que nenhum ser humano se insurge
contra a rotina desgastante e estressante do mundo dos escritórios públicos e
privados? Porque nos civilizamos, numa expressão elisiana, ou porque nos
tornamos seres dóceis e disciplinados, numa expressão foucaldiana. É a minha
única hipótese.
Como seres dóceis e disciplinados que nos tornamos,
controlamos hoje nossas emoções e instintos mais básicos em favor da
produtividade da Empresa ou da urgência de análises e sistemas do setor público.
Assim como reprimimos o apaixonar-se ou o sofrer por amor, pois nestas
situações nos tornamos totalmente improdutivos e pouco concentrados, também
reprimimos necessidades básicas como ter fome, fazer xixi, sentir dor.... Qualquer
pessoa emprega no setor público ou privado já viveu aquelas situações em que o
tempo não sobra nem mesmo para ir ao banheiro. Também já experimentou situações
em que foi almoçar duas horas ou três horas da tarde. Ou ainda, que pegou uma
infecção urinária porque não bebia água. Não estou querendo assombrar, mas é
muito comum no estresse do dia a dia, as pessoas esquecerem-se de beber água,
fazer xixi, comer. Se somos capazes de adiar necessidades tão vitais, imagina
em que grau de prioridade está o amor.
Há poucos dias, eu pensei em escrever um
manifesto. Ele se chamaria: “Manifesto daqueles que fazem xixi”. E abriria com
uma frase bombástica: Eu faço xixi. Não tenho vergonha de dizer que eu faço
xixi desde o dia em que nasci. E se
seguiria com uma frase ainda mais bombástica: Eu morro por amor. Sou indesculpavelmente
romântica. Ouço músicas do Roberto Carlos e choro com o desenho animado da
Cinderela (que eu já assisti mais de 100 vezes). Ao contrário do meu amigo, que agora vai a um
psicólogo para saber o que está acontecendo com sua razão, eu sei que sou uma
romântica incurável. Não há tratamento para o meu caso. Todos os dias eu me
apaixono. Seja pela cor da rosa que nasceu no meu jardim, seja pelo meu
cachorro travesso chamado Johnny, seja pelo meu filho cada dia um rapaz mais
lindo. Descubro na vida tantos detalhes diferentes que eu ainda não havia notado.
E sou grata a Deus por me permitir participar de sua criação. Sou uma pessoa
comum assim, que se apaixona, tem fome, faz xixi e acredita num Deus sábio que
nos protege de todo o mal. Amém.