sábado, 12 de setembro de 2015

Os dóceis


Encontrei um amigo esta semana que acredita ter sido acometido de um mal súbito: o amor. Procurou um analista para identificar a origem do seu mal e como proteger-se da próxima paixão. A seu ver deve existir algo de patológico no seu comportamento, passível de ser diagnosticado e corrigido pela ciência. Me lembrei dos médicos no final do século XVIII que também associavam o amor a doença. Quase lhe recomendei alguns autores daquele período. Mas o incômodo do meu amigo sinaliza para um comportamento comum no século XXI: a civilização das emoções, para usar uma expressão elisiana, vai nos tornando cada dia mais regrados, contidos e concentrados no trabalho e estresse da vida moderna. A vida, essa que nasce do lado de fora das janelas dos escritórios, que tem cheiro, sabor e cor vai sendo substituída pela urgência dos processos burocráticos, pela gravidade dos números sobre produtividade e gestão, pelas infindáveis reuniões com propósitos ilustres mas sem resultados palpáveis... Respondi ao meu amigo que se acalmasse, pois todo o seu sofrimento vinha de não saber lidar com suas emoções e sexualidade. Se lhe servia do consolo, a maioria de nós nunca atingirá este estado de nirvana. Faz parte da condição humana o viver e o sofrer por amor. Com o tempo nos acostumamos que essas ondas virão, passarão e virão novamente. Como crianças, vamos aprendendo a brincar com as ondas sem acreditar na possibilidade da morte. Mas voltemos ao caso do meu amigo, pois ele exemplifica bem o comportamento do homem civilizado e o risco que traz para toda a espécie.
Convivo, diariamente, com pessoas que parecem feitas de outro material, pois não sentem necessidades básicas e não se permitem emoções comuns. Elas vivem em função do trabalho. O trabalho lhes protege de viver, torna-se uma desculpa fácil e convincente para não se aventurarem no desconhecido e imprevisível desafio de viver. Quando trabalhava no Banco do Brasil, esses personagens eram muito comuns. Eu acreditava que se tratava de uma patologia da Empresa. Fui para o serviço público e lá encontrei indivíduos num grau patológico ainda mais avançado. Nelson do Vale, meu amigo e ator de uma tese brilhante sobre o serviço público, já havia me alertado para esse comportamento suicida. No Banco do Brasil, quanto mais ascendiam ao nível de direção mais as pessoas se tornavam escravas do trabalho. Eram duas variáveis diretamente correlacionadas. Se perguntassem a elas, por que entravam  nove horas da manhã na Empresa e saiam às dez horas da noite, responderiam que estavam obrigadas a esse comportamento porque o gerente pediu, porque tinham um projeto com data para entregar, porque havia uma resposta imediata a dar a um cliente etc. etc. etc. Numa empresa, o indivíduo diz: eu sou obrigado a agir assim para não perder a minha função. No serviço público, a resposta é: eu tenho uma causa nobre para defender e quem me pede tem muito poder político para exigir. Nas duas situações,  a pessoa se deixou escravizar. Por que razão, a pessoa não diz não? Não posso, estou indo embora para casa. Não vou fazer pois ultrapassou os meus limites físicos. Inventa uma desculpa esfarrapada, como uma dor de cabeça súbita, e vai pegar o filho na escola para assistir a um filminho. Olha, que legal: sair às três horas da tarde para ir ao cinema com o filho. Ninguém vai ver, pois você estará escondidinho no escuro com seu filho, comendo pipoca e rindo gargalhadas.  Mas por que ninguém ousa  esse comportamento de insubordinação à lógica racional burocrática do mundo moderno? Por que nenhum ser humano se insurge contra a rotina desgastante e estressante do mundo dos escritórios públicos e privados? Porque nos civilizamos, numa expressão elisiana, ou porque nos tornamos seres dóceis e disciplinados, numa expressão foucaldiana. É a minha única hipótese. 
Como seres dóceis e disciplinados que nos tornamos, controlamos hoje nossas emoções e instintos mais básicos em favor da produtividade da Empresa ou da urgência de análises e sistemas do setor público. Assim como reprimimos o apaixonar-se ou o sofrer por amor, pois nestas situações nos tornamos totalmente improdutivos e pouco concentrados, também reprimimos necessidades básicas como ter fome, fazer xixi, sentir dor.... Qualquer pessoa emprega no setor público ou privado já viveu aquelas situações em que o tempo não sobra nem mesmo para ir ao banheiro. Também já experimentou situações em que foi almoçar duas horas ou três horas da tarde. Ou ainda, que pegou uma infecção urinária porque não bebia água. Não estou querendo assombrar, mas é muito comum no estresse do dia a dia, as pessoas esquecerem-se de beber água, fazer xixi, comer. Se somos capazes de adiar necessidades tão vitais, imagina em que grau de prioridade está o amor.
Há poucos dias, eu pensei em escrever um manifesto. Ele se chamaria: “Manifesto daqueles que fazem xixi”. E abriria com uma frase bombástica: Eu faço xixi. Não tenho vergonha de dizer que eu faço xixi desde o dia em que nasci.  E se seguiria com uma frase ainda mais bombástica: Eu morro por amor. Sou indesculpavelmente romântica. Ouço músicas do Roberto Carlos e choro com o desenho animado da Cinderela (que eu já assisti mais de 100 vezes).  Ao contrário do meu amigo, que agora vai a um psicólogo para saber o que está acontecendo com sua razão, eu sei que sou uma romântica incurável. Não há tratamento para o meu caso. Todos os dias eu me apaixono. Seja pela cor da rosa que nasceu no meu jardim, seja pelo meu cachorro travesso chamado Johnny, seja pelo meu filho cada dia um rapaz mais lindo. Descubro na vida tantos detalhes diferentes que eu ainda não havia notado. E sou grata a Deus por me permitir participar de sua criação. Sou uma pessoa comum assim, que se apaixona, tem fome, faz xixi e acredita num Deus sábio que nos protege de todo o mal. Amém.