A Igreja Católica e o casamento
Nem sempre amor e sexo estiveram
incluídos no casamento. A confusão começa no século XVI e a Igreja Católica deu
uma boa contribuição. O amor era um sentimento marginal, associado a comportamentos
doentios. Os livros de Medicina do período descrevem os sintomas dos seres
enamorados como se tratasse de uma doença física. Por isso, as famílias
cuidavam para que os jovens não sofressem de mal tão perigoso, que não possuía
tratamento certo e que, em situações extremas, poderia levar o indivíduo a
morte. O assunto, problema restrito a Medicina doméstica, torna-se qualidade
fundamental do casamento a partir do Concílio de Trento (1545 – 1563). A Igreja
Católica faz uma reforma de sua doutrina e, entre as mudanças, eleva o casamento
ao status de sacramento.
Até a Reforma Protestante, o
casamento era uma celebração pagã que se realizava na porta da Igreja, no ambiente externo, pois os interesses
mundanos que orientavam o casamento não poderiam ser discutidos no ambiente
sagrado da Igreja. Tratava-se de um contrato econômico entre famílias para
decidir fusão de propriedades, transmissão de herança ou questões diplomáticas
entre condados. Ao realizar o Concílio, a Igreja cria um novo tipo de celibato,
acessível ao homem comum: o casamento. A Igreja reconhecia que a vida
celibatária não era um comportamento possível para a maioria dos indivíduos. Poucos
conseguiam abrir mão das satisfações e desejos imediatos para seguir o estreito
caminho de renúncia e amor a Deus. Somente aqueles capazes de renunciar as
paixões e gozos da vida terrena estariam em condições de viver segundo a
doutrina cristã. Por essa razão, o restante dos mortais dependia desses poucos
para ganhar a salvação. Os santos intercederiam junto a Deus pelos pecadores.
Não quer dizer que os
representantes da Igreja Católica de fato praticassem o celibato e uma vida de privações. Antes do Concílio de Trento, era
muito comum o casamento clandestino de padres, o envolvimento em questões
políticas, econômicos e mesmo a participação em atividades de guerra. A Igreja
era uma classe social que defendia os seus interesses e os indivíduos optavam
pela carreira religiosa como forma de alcançar um título social, equivalente ao de nobreza. Os decretos e decisões tomadas durante o Concílio de Trento são
uma resposta às críticas e questionamentos do movimento protestante. Entre as reformulações, o protestantismo pregava
um Deus mais próximo do indivíduo comum, o alcance da salvação sem a
necessidade de intermediários e do pagamento de indulgências e, ao mesmo tempo,
a vida doméstica como o espaço ideal para o exercício diário de vivência dos
preceitos cristãos e glorificação de Deus.
O protestantismo leva a Igreja Católica
a reformular sua doutrina e grande parte das mudanças é decidida durante o
Concílio de Trento, um dos mais longos empreendidos pela Igreja. Entre as novidades, o casamento é elevado à condição
de sacramento. Ao fazê-lo a Igreja resolve dois problemas: a) torna o
cristianismo uma doutrina acessível ao homem comum; pois o casamento passa a
ser interpretado como um celibato de segunda ordem, que permite praticar o sexo
com fins de procriação; e b) ganha condições de interferir nas questões
econômicas e políticas que eram resolvidas pelos nobres por meio de contratos
de casamento. Para casar, os nobres ficavam obrigados a consultar a Igreja, que
verificava a existência ou não de relação de parentesco até o terceiro grau
entre os pretendentes.
Nesse mesmo momento, o casamento
ganha um ingrediente novo, o amor. Somente eram legítimas as uniões resultantes
do amor, construídas em prol de um sentimento puro e eterno, quase uma mácula
do divino no humano. Os casamentos por interesse, exclusivo dos nobres, eram
reprovados e rechaçados. Aqui começa uma
característica particular da sociedade Ocidental que foi a única, segundo
Anthony Giddens, a fazer do amor apaixonado a base do casamento. A única a usar um sentimento impulsivo e
instável como fundamento de um contrato com implicações para o resto da vida do
indivíduo.
Não foi fácil para a Igreja
convencer os nobres de que estava autorizada a legislar e interferir em
questões econômicas e políticas. Não foi sem resistência que conquistou a
condição de falar sobre as uniões estáveis, impor restrições, abençoar ou
proibir casamentos. Foram tantas as
brigas, que o rei Henrique VIII rompeu com a Igreja e casou-se com Ana Bolena.
A Inglaterra tornou-se protestante.
Se a Igreja deu sua contribuição
para a fusão do casamento com amor, veio somar a afinidade eletiva dessa
modalidade de união com o estilo de vida e visão de mundo da classe ascendente,
a burguesia. O processo de domesticação do amor e do sexo iniciado pela Igreja
Católica, de migração para os estreitos limites do casamento de impulsos
instintivos e emocionais, foi concluído pela conduta da burguesia e a
organização social que surgiu nas cidades.
A burguesia é urbana, reside em
casas menores, com poucos empregados domésticos, possui horários, disciplina de
compromissos diários. Junto com ela, vem
o proletário, despossuído e ocupado em
longas e estafantes rotinas de trabalho. O modo de vida da nobreza passa a ser criticado em razão do luxo, das orgias, dos
custos para o Estado e também porque a arte de guerrear não era mais tão
necessária num mundo onde as disputas se davam por rotas comerciais, pelo
desenvolvimento tecnológico, pelo aumento da produtividade. A nobreza perdia sua
função e conseqüente importância. No
ambiente restrito da casa, homem e mulher precisam dividir responsabilidades
por educar os filhos e gerenciar os negócios da família. A oficina é uma
extensão da casa do burguês. Nesse momento, o casamento não é mais um contrato
diplomático entre nobres, mas um contrato com características econômicas
suavizadas, onde o amor passa a ser o cimento, a união entre duas pessoas para
resolver problemas domésticos, relacionados ao dia a dia, contando com a bênção
da Igreja.
E onde está o terceiro elemento
de nossa história, o sexo? Apenas recentemente o sexo foi adicionado ao
casamento como um ingrediente necessário. Surge nos anos 60, com o ingresso da mulher
no mercado de trabalho. Conforme ela ganha independência econômica passa a
reivindicar a realização sexual como fator fundamental para a felicidade e
durabilidade do casamento.
Ma o fato dos três elementos
terem se aproximado não levou a uma domesticação definitiva do amor e do sexo. A sociedade Ocidental segue numa tendência a
racionalização das emoções, impulsos e desejos, no entanto nada impede os
influxos, as crises e contínuas mudanças que questionam a inclusão desses
ingredientes num contrato que responde a exigências práticas. O amor ao
tornar-se ingrediente do casamento não deixou de ser o amor. Mas o que é o amor
para a Sociologia, como defini-lo? Ele possui uma natureza? Não é um construção
social?
Definir o casamento é fácil, pois
trata-se de uma instituição e como tal possui regras. Também não é difícil definir
o sexo, pois é um impulso natural, um instinto. Mas e o amor? Como defini-lo? Há
dois autores que nos ajudam a resolver esse problema: Simmel e Durkheim. O
primeiro tratou das díades e o segundo das relações de solidariedade do tipo
mecânica e orgânica. O amor é uma díade onde vigoram relações do tipo mecânicas.
O que isso quer dizer?
A díade é uma estrutura social
tão simples que depende completamente do outro para existir. Basta que um dos
integrantes renuncie a união para ela dissolver-se. Por isso, a questão da
existência é uma preocupação constante e que persegue os participantes de forma
muito mais intensa que nos grupos maiores, onde a saída de um dos membros não
significa sua extinção. A díade é um grupo que se sente o tempo todo ameaçado e
insubstituível. O que dá origem a uma
díade pode ser um acordo, um segredo, um objetivo comum, mas possui uma
natureza muito diversa “daquela que seria possível num grupo maior, ainda que
fosse de apenas três participantes” (Simmel).
Mas o que une o casal, qual é a
natureza das relações? Num grupo tão fechado e pequeno podem existir laços de
solidariedade orgânica, mas serão raros. Aqueles definidos por afinidades e
semelhanças serão mais fortes e comuns. Tendem a excluir todos que sejam
diferentes. Cada um se sentirá confrontado apenas com o parceiro, e não com a sociedade
que lhe fica sobreposta. Agem fechando as fronteiras da díade ao mundo externo,
onde pouco interessa o que pensa a grande sociedade sobre suas condutas, apenas
o juízo do outro importa. Segundo
Simmel, a estrutura social, aqui, repousa igualmente sobre os dois, sendo que o
desvio de qualquer deles significaria a destruição do todo.
O casal apaixonado tende a
fechar-se para o mundo a fim de proteger-se das ameaças externas. Por essa razão,
Freud dizia que, nos extremos, Eros e Thanatos se encontram. O rompimento de um
dos elementos da díade é interpretado não apenas como a extinção do grupo, mas
do próprio indivíduo, já que o ambiente social lhe é subitamente suprimido. Ele
precisará de tempo e esforço para situar-se novamente no ambiente social
externo.
Enfim, o amor é o resumo de um
conjunto de dilemas e emoções que surgem das relações da díade. Possui, em
razão de suas características, um caráter anti-social e disruptivo. Ao contrário
das outras relações embasadas na complementaridade das qualidades individuais,
sendo assim mais expansivas e produtivas; o amor é socialmente improdutivo e
restritivo. Por conta dessas
características não favorece o casamento, não contribui para suas finalidades
que são muito instrumentais e econômicas. Sempre foram. Tanto o ímpeto sexual
quanto o amor apaixonado não cabem nos estreitos limites do casamento. Por
acaso foram acrescidos a instituição, mas dificilmente podem permanecer nela. A
violência que surge a partir das relações amorosas, os freqüentes casos de
assassinatos ou agressões sofridos por uma das partes ou a trama para
assassinar alguém que dificulta a união do casal são exemplos de como o amor concorre
com a sociedade externa. O casamento duradouro e produtivo está assentado em
relações de outro tipo que não a do amor apaixonado.