domingo, 14 de julho de 2019


A Igreja Católica e o casamento

 Qual foi o processo histórico que levou a estranha associação entre sexo, amor e casamento? Esse foi o problema de pesquisa a que me dediquei durante alguns anos e cujas anotações estão neste blog. Para Sociologia, usando uma classificação de Weber, sexo é um impulso instintivo; o amor, uma ação social quase racional e o casamento, uma instituição com finalidades práticas e objetivas, no  mínimo uma ação social orientada para valores. Como reunir, na mesma salada, ações com características diversas? Quis entender em que momento da história da humanidade aconteceu a confusão e quais foram seus principais atores.
Nem sempre amor e sexo estiveram incluídos no casamento. A confusão começa no século XVI e a Igreja Católica deu uma boa contribuição. O amor era um sentimento marginal, associado a comportamentos doentios. Os livros de Medicina do período descrevem os sintomas dos seres enamorados como se tratasse de uma doença física. Por isso, as famílias cuidavam para que os  jovens não  sofressem de mal tão perigoso, que não possuía tratamento certo e que, em situações extremas, poderia levar o indivíduo a morte. O assunto, problema restrito a Medicina doméstica, torna-se qualidade fundamental do casamento a partir do Concílio de Trento (1545 – 1563). A Igreja Católica faz uma reforma de sua doutrina e, entre as mudanças, eleva o casamento ao status de sacramento.
Até a Reforma Protestante, o casamento era uma celebração pagã que se realizava na porta da Igreja,  no ambiente externo, pois os interesses mundanos que orientavam o casamento não poderiam ser discutidos no ambiente sagrado da Igreja. Tratava-se de um contrato econômico entre famílias para decidir fusão de propriedades, transmissão de herança ou questões diplomáticas entre condados. Ao realizar o Concílio, a Igreja cria um novo tipo de celibato, acessível ao homem comum: o casamento. A Igreja reconhecia que a vida celibatária não era um comportamento possível para a maioria dos indivíduos. Poucos conseguiam abrir mão das satisfações e desejos imediatos para seguir o estreito caminho de renúncia e amor a Deus. Somente aqueles capazes de renunciar as paixões e gozos da vida terrena estariam em condições de viver segundo a doutrina cristã. Por essa razão, o restante dos mortais dependia desses poucos para ganhar a salvação. Os santos intercederiam junto a Deus pelos pecadores.
Não quer dizer que os representantes da Igreja Católica de fato praticassem o celibato e uma vida de  privações. Antes do Concílio de Trento, era muito comum o casamento clandestino de padres, o envolvimento em questões políticas, econômicos e mesmo a participação em atividades de guerra. A Igreja era uma classe social que defendia os seus interesses e os indivíduos optavam pela carreira religiosa como forma de alcançar um título social, equivalente ao de nobreza. Os decretos e decisões tomadas durante o Concílio de Trento são uma resposta às críticas e questionamentos do movimento protestante.  Entre as reformulações, o protestantismo pregava um Deus mais próximo do indivíduo comum, o alcance da salvação sem a necessidade de intermediários e do pagamento de indulgências e, ao mesmo tempo, a vida doméstica como o espaço ideal para o exercício diário de vivência dos preceitos cristãos e glorificação de Deus.  
O protestantismo leva a Igreja Católica a reformular sua doutrina e grande parte das mudanças é decidida durante o Concílio de Trento, um dos mais longos empreendidos pela Igreja. Entre  as novidades, o casamento é elevado à condição de sacramento. Ao fazê-lo a Igreja resolve dois problemas: a) torna o cristianismo uma doutrina acessível ao homem comum; pois o casamento passa a ser interpretado como um celibato de segunda ordem, que permite praticar o sexo com fins de procriação; e b) ganha condições de interferir nas questões econômicas e políticas que eram resolvidas pelos nobres por meio de contratos de casamento. Para casar, os nobres ficavam obrigados a consultar a Igreja, que verificava a existência ou não de relação de parentesco até o terceiro grau entre os pretendentes.
Nesse mesmo momento, o casamento ganha um ingrediente novo, o amor. Somente eram legítimas as uniões resultantes do amor, construídas em prol de um sentimento puro e eterno, quase uma mácula do divino no humano. Os casamentos por interesse, exclusivo dos nobres, eram reprovados e rechaçados.  Aqui começa uma característica particular da sociedade Ocidental que foi a única, segundo Anthony Giddens, a fazer do amor apaixonado a base do casamento.  A única a usar um sentimento impulsivo e instável como fundamento de um contrato com implicações para o resto da vida do indivíduo.
Não foi fácil para a Igreja convencer os nobres de que estava autorizada a legislar e interferir em questões econômicas e políticas. Não foi sem resistência que conquistou a condição de falar sobre as uniões estáveis, impor restrições, abençoar ou proibir casamentos.  Foram tantas as brigas, que o rei Henrique VIII rompeu com a Igreja e casou-se com Ana Bolena. A Inglaterra tornou-se protestante.
Se a Igreja deu sua contribuição para a fusão do casamento com amor, veio somar a afinidade eletiva dessa modalidade de união com o estilo de vida e visão de mundo da classe ascendente, a burguesia. O processo de domesticação do amor e do sexo iniciado pela Igreja Católica, de migração para os estreitos limites do casamento de impulsos instintivos e emocionais, foi concluído pela conduta da burguesia e a organização social que surgiu nas cidades.
A burguesia é urbana, reside em casas menores, com poucos empregados domésticos, possui horários, disciplina de compromissos diários.  Junto com ela, vem o proletário,  despossuído e ocupado em longas e estafantes rotinas de trabalho. O modo de vida da nobreza passa a ser  criticado em razão do luxo, das orgias, dos custos para o Estado e também porque a arte de guerrear não era mais tão necessária num mundo onde as disputas se davam por rotas comerciais, pelo desenvolvimento tecnológico, pelo aumento da produtividade. A nobreza perdia sua função e conseqüente importância.  No ambiente restrito da casa, homem e mulher precisam dividir responsabilidades por educar os filhos e gerenciar os negócios da família. A oficina é uma extensão da casa do burguês. Nesse momento, o casamento não é mais um contrato diplomático entre nobres, mas um contrato com características econômicas suavizadas, onde o amor passa a ser o cimento, a união entre duas pessoas para resolver problemas domésticos, relacionados ao dia a dia, contando com a bênção da Igreja.
E onde está o terceiro elemento de nossa história, o sexo? Apenas recentemente o sexo foi adicionado ao casamento como um ingrediente necessário. Surge nos anos 60, com o ingresso da mulher no mercado de trabalho. Conforme ela ganha independência econômica passa a reivindicar a realização sexual como fator fundamental para a felicidade e durabilidade do casamento.
Ma o fato dos três elementos terem se aproximado não levou a uma domesticação definitiva do amor e do sexo.  A sociedade Ocidental segue numa tendência a racionalização das emoções, impulsos e desejos, no entanto nada impede os influxos, as crises e contínuas mudanças que questionam a inclusão desses ingredientes num contrato que responde a exigências práticas. O amor ao tornar-se ingrediente do casamento não deixou de ser o amor. Mas o que é o amor para a Sociologia, como defini-lo? Ele possui uma natureza? Não é um construção social?
Definir o casamento é fácil, pois trata-se de uma instituição e como tal possui regras. Também não é difícil definir o sexo, pois é um impulso natural, um instinto. Mas e o amor? Como defini-lo? Há dois autores que nos ajudam a resolver esse problema: Simmel e Durkheim. O primeiro tratou das díades e o segundo das relações de solidariedade do tipo mecânica e orgânica. O amor é uma díade onde vigoram relações do tipo mecânicas. O que isso quer dizer?
A díade é uma estrutura social tão simples que depende completamente do outro para existir. Basta que um dos integrantes renuncie a união para ela dissolver-se. Por isso, a questão da existência é uma preocupação constante e que persegue os participantes de forma muito mais intensa que nos grupos maiores, onde a saída de um dos membros não significa sua extinção. A díade é um grupo que se sente o tempo todo ameaçado e insubstituível.  O que dá origem a uma díade pode ser um acordo, um segredo, um objetivo comum, mas possui uma natureza muito diversa “daquela que seria possível num grupo maior, ainda que fosse de apenas três participantes” (Simmel).
Mas o que une o casal, qual é a natureza das relações? Num grupo tão fechado e pequeno podem existir laços de solidariedade orgânica, mas serão raros. Aqueles definidos por afinidades e semelhanças serão mais fortes e comuns. Tendem a excluir todos que sejam diferentes. Cada um se sentirá confrontado apenas com o parceiro, e não com a sociedade que lhe fica sobreposta. Agem fechando as fronteiras da díade ao mundo externo, onde pouco interessa o que pensa a grande sociedade sobre suas condutas, apenas o juízo do outro importa.  Segundo Simmel, a estrutura social, aqui, repousa igualmente sobre os dois, sendo que o desvio de qualquer deles significaria a destruição do todo.
O casal apaixonado tende a fechar-se para o mundo a fim de proteger-se das ameaças externas. Por essa razão, Freud dizia que, nos extremos, Eros e Thanatos se encontram. O rompimento de um dos elementos da díade é interpretado não apenas como a extinção do grupo, mas do próprio indivíduo, já que o ambiente social lhe é subitamente suprimido. Ele precisará de tempo e esforço para situar-se novamente no ambiente social externo.  
Enfim, o amor é o resumo de um conjunto de dilemas e emoções que surgem das relações da díade. Possui, em razão de suas características, um caráter anti-social e disruptivo. Ao contrário das outras relações embasadas na complementaridade das qualidades individuais, sendo assim mais expansivas e produtivas; o amor é socialmente improdutivo e restritivo.  Por conta dessas características não favorece o casamento, não contribui para suas finalidades que são muito instrumentais e econômicas. Sempre foram. Tanto o ímpeto sexual quanto o amor apaixonado não cabem nos estreitos limites do casamento. Por acaso foram acrescidos a instituição, mas dificilmente podem permanecer nela. A violência que surge a partir das relações amorosas, os freqüentes casos de assassinatos ou agressões sofridos por uma das partes ou a trama para assassinar alguém que dificulta a união do casal são exemplos de como o amor concorre com a sociedade externa. O casamento duradouro e produtivo está assentado em relações de outro tipo que não a do amor apaixonado.            

sábado, 12 de setembro de 2015

Os dóceis


Encontrei um amigo esta semana que acredita ter sido acometido de um mal súbito: o amor. Procurou um analista para identificar a origem do seu mal e como proteger-se da próxima paixão. A seu ver deve existir algo de patológico no seu comportamento, passível de ser diagnosticado e corrigido pela ciência. Me lembrei dos médicos no final do século XVIII que também associavam o amor a doença. Quase lhe recomendei alguns autores daquele período. Mas o incômodo do meu amigo sinaliza para um comportamento comum no século XXI: a civilização das emoções, para usar uma expressão elisiana, vai nos tornando cada dia mais regrados, contidos e concentrados no trabalho e estresse da vida moderna. A vida, essa que nasce do lado de fora das janelas dos escritórios, que tem cheiro, sabor e cor vai sendo substituída pela urgência dos processos burocráticos, pela gravidade dos números sobre produtividade e gestão, pelas infindáveis reuniões com propósitos ilustres mas sem resultados palpáveis... Respondi ao meu amigo que se acalmasse, pois todo o seu sofrimento vinha de não saber lidar com suas emoções e sexualidade. Se lhe servia do consolo, a maioria de nós nunca atingirá este estado de nirvana. Faz parte da condição humana o viver e o sofrer por amor. Com o tempo nos acostumamos que essas ondas virão, passarão e virão novamente. Como crianças, vamos aprendendo a brincar com as ondas sem acreditar na possibilidade da morte. Mas voltemos ao caso do meu amigo, pois ele exemplifica bem o comportamento do homem civilizado e o risco que traz para toda a espécie.
Convivo, diariamente, com pessoas que parecem feitas de outro material, pois não sentem necessidades básicas e não se permitem emoções comuns. Elas vivem em função do trabalho. O trabalho lhes protege de viver, torna-se uma desculpa fácil e convincente para não se aventurarem no desconhecido e imprevisível desafio de viver. Quando trabalhava no Banco do Brasil, esses personagens eram muito comuns. Eu acreditava que se tratava de uma patologia da Empresa. Fui para o serviço público e lá encontrei indivíduos num grau patológico ainda mais avançado. Nelson do Vale, meu amigo e ator de uma tese brilhante sobre o serviço público, já havia me alertado para esse comportamento suicida. No Banco do Brasil, quanto mais ascendiam ao nível de direção mais as pessoas se tornavam escravas do trabalho. Eram duas variáveis diretamente correlacionadas. Se perguntassem a elas, por que entravam  nove horas da manhã na Empresa e saiam às dez horas da noite, responderiam que estavam obrigadas a esse comportamento porque o gerente pediu, porque tinham um projeto com data para entregar, porque havia uma resposta imediata a dar a um cliente etc. etc. etc. Numa empresa, o indivíduo diz: eu sou obrigado a agir assim para não perder a minha função. No serviço público, a resposta é: eu tenho uma causa nobre para defender e quem me pede tem muito poder político para exigir. Nas duas situações,  a pessoa se deixou escravizar. Por que razão, a pessoa não diz não? Não posso, estou indo embora para casa. Não vou fazer pois ultrapassou os meus limites físicos. Inventa uma desculpa esfarrapada, como uma dor de cabeça súbita, e vai pegar o filho na escola para assistir a um filminho. Olha, que legal: sair às três horas da tarde para ir ao cinema com o filho. Ninguém vai ver, pois você estará escondidinho no escuro com seu filho, comendo pipoca e rindo gargalhadas.  Mas por que ninguém ousa  esse comportamento de insubordinação à lógica racional burocrática do mundo moderno? Por que nenhum ser humano se insurge contra a rotina desgastante e estressante do mundo dos escritórios públicos e privados? Porque nos civilizamos, numa expressão elisiana, ou porque nos tornamos seres dóceis e disciplinados, numa expressão foucaldiana. É a minha única hipótese. 
Como seres dóceis e disciplinados que nos tornamos, controlamos hoje nossas emoções e instintos mais básicos em favor da produtividade da Empresa ou da urgência de análises e sistemas do setor público. Assim como reprimimos o apaixonar-se ou o sofrer por amor, pois nestas situações nos tornamos totalmente improdutivos e pouco concentrados, também reprimimos necessidades básicas como ter fome, fazer xixi, sentir dor.... Qualquer pessoa emprega no setor público ou privado já viveu aquelas situações em que o tempo não sobra nem mesmo para ir ao banheiro. Também já experimentou situações em que foi almoçar duas horas ou três horas da tarde. Ou ainda, que pegou uma infecção urinária porque não bebia água. Não estou querendo assombrar, mas é muito comum no estresse do dia a dia, as pessoas esquecerem-se de beber água, fazer xixi, comer. Se somos capazes de adiar necessidades tão vitais, imagina em que grau de prioridade está o amor.
Há poucos dias, eu pensei em escrever um manifesto. Ele se chamaria: “Manifesto daqueles que fazem xixi”. E abriria com uma frase bombástica: Eu faço xixi. Não tenho vergonha de dizer que eu faço xixi desde o dia em que nasci.  E se seguiria com uma frase ainda mais bombástica: Eu morro por amor. Sou indesculpavelmente romântica. Ouço músicas do Roberto Carlos e choro com o desenho animado da Cinderela (que eu já assisti mais de 100 vezes).  Ao contrário do meu amigo, que agora vai a um psicólogo para saber o que está acontecendo com sua razão, eu sei que sou uma romântica incurável. Não há tratamento para o meu caso. Todos os dias eu me apaixono. Seja pela cor da rosa que nasceu no meu jardim, seja pelo meu cachorro travesso chamado Johnny, seja pelo meu filho cada dia um rapaz mais lindo. Descubro na vida tantos detalhes diferentes que eu ainda não havia notado. E sou grata a Deus por me permitir participar de sua criação. Sou uma pessoa comum assim, que se apaixona, tem fome, faz xixi e acredita num Deus sábio que nos protege de todo o mal. Amém. 

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

O amor e o medo


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O amor é uma revolução. Não a calmaria de um domingo à tarde, mas a tempestade. Nada resta após ele passar, todas as certezas vão ao chão.  A vida organizada, regrada e constante é desfeita. O amor nos rouba o medo e essa é a origem de toda mudança. O medo é o que te congela, mumifica e imobiliza. O medo nos faz seguir calmos, educados e regrados a vida cotidiana bem comportada. Mas nunca nos sentimos tão desprotegidos como no momento em que amamos. A perda do ente amado, por qualquer razão, pode, da noite para o dia, de uma hora para outra, te levar a angústia, sofrimento, depressão e até a morte. E como o risco é constante e como é preciso enfrenta-lo, diariamente, não há outra saída senão renunciar ao medo.

Não há mais medo quando o pior dos mundos está a sua frente e te acena como uma ameaça constante. Ao enfrentar o pior dos medos, os outros se tornam menores e mais fáceis. Daí a origem de toda mudança, que se soma a coragem. Mas por que ela aparece? Não bastava que o  medo fosse embora?

Não foi apenas porque o medo se foi, mas porque naquele momento você começa a se ver melhor. O outro nada mais é que você mesmo. Um espelho que te leva a conhecer  suas qualidades, vontades, valores, desejos, sonhos... Ah! Uma montanha de coisas esquecidas bem no fundo do baú.  Ele ama uma quantidade de você que havia sido colocada de lado. Ele acorda você. Ele acorda o monstro adormecido.

O beijo do príncipe na Branca de Neve significa isso. A princesa dentro da gata borralheira também possibilita essa leitura. Há um elemento de melhor em você que o outro percebe e que passa, então, a reivindicar sua existência. Também pode ser o elemento de pior, veja os casos de amantes que planejam crimes em comum na perspectiva de viverem seu sentimento numa situação mais confortável. Há algo de incivilizado no amor, sempre houve. É por essa razão que todas as civilizações, em diferentes momentos da história, nunca colocaram o amor como fundamento da sociedade.

O amor foi sempre um sentimento libertino, desregrado, vil, espúrio e que deveria ficar do lado de fora dos lares. Moças de família e de bem não eram aconselhadas a vivê-lo. Bem, voltei ao tema desse blog. Sobre o assunto já falei em outros momentos. Agora, quero entrar numa análise mais psicológica, quero dizer o quanto o amor está relacionado à identidade e como a origem de toda coragem vem de realizar sua própria identidade. O outro faz você se reencontrar com sua identidade, com tudo que para você importa e deixar de lado o que é fútil. Pense que se as pessoas amassem mais o mundo seria uma revolução constante. As manifestações hoje nas ruas do Brasil não terminariam nunca. Ninguém permitiria ser escravizado, pois a escravidão tem a ver com o desejo de segurança.

domingo, 23 de setembro de 2012


Nelson Rodrigues trouxe à Sociologia brasileira contribuições originais. Talvez esteja entre os nossos melhores sociólogos. Dedicou-se a diversos objetos de estudo, mas entre os seus preferidos estão o casamento como instituição e as díades. Provavelmente, Nelson Rodrigues nunca leu Simmel e não soubesse sequer o que significava díade. Mas de todas as suas investigações, as díades foram as que lhe renderam os melhores textos e as melhores peças de teatro.

Observou que nem todos os indivíduos possuem um comportamento adequado com os padrões sociais. Verificou mesmo que a maioria, em algum momento da vida, acaba cometendo algum tipo de desvio. Se tivesse lido Howard Becker, concordaria com o autor que os desvios são mesmo muito comuns. Um dos desvios que o motivou a inúmeros textos foi o adultério. O casamento, para ele, era uma instituição que não funcionava. As mulheres nem sempre participavam da escolha de seus futuros maridos, atendiam as preferências das famílias. Sentiam-se obrigadas a casar e apressavam a união com quem não tinham afinidade. Com o tempo, o casamento tornava-se um martírio, uma rotina sem fim, até o momento em que a mulher encontrava um grande amor.

Quando fala em amor, Nelson Rodrigues  é  sociólogo mais que escritor de literatura. Seu conceito de amor não faz referência ao jargão comum do que se entende por esse sentimento desde os românticos: amor para o todo sempre, indivisível, com casamento e filhos. O amor é um sentimento anti-social. O amor, para ele, é a identidade entre duas pessoas, vivida de maneira tão forte e extrema, que a sociedade deixa de ser importante e o casal rompe com todo vínculo social. Quando isso acontece, a conseqüência  possível é o crime, o suicídio, o assassinato...

A díade busca a sua sobrevivência, não a realização da sociedade. Qualquer pessoa que tenha um dia vivido um grande amor experimentou esse sentimento de desprendimento, do tempo correndo num ritmo diferente, de não se importar com a opinião dos amigos e familiares, de satisfação plena em simplesmente estar ao lado do outro. Por isso, as histórias de amor nos contos de Nelson Rodrigues terminam quase sempre em tragédia, não possuem como objetivo funcionar no mundo. Pelo contrário, as díades são pequenas sociedades de dois indivíduos que se satisfazem plenamente dentro da sociedade maior. Possuem um fechamento em relação à sociedade. Não são comuns e se fossem, simplesmente, causariam um caos social.

 É por essa razão, que Nelson Rodrigues diz que quem amou e não desejou a morte, nunca amou.  Porque, para ele, o amor no seu extremo  leva a um rompimento tão radical com a sociedade, cuja conclusão pode ser o suicídio.Um dos temas repetidos  nas crônicas de Nelson Rodrigues é a história de jovens amantes que planejam a morte juntos. Ou então, fugir do mundo. Não me esqueço dos personagens Engraçadinha e Luís Cláudio que ponderam se não seria mais simples fugir: “Vamos fugir” diz Luís Cláudio para Engraçadinha.  “É tão simples fugir!”, argumenta.

Porque o amor é um sentimento anti-social, nas histórias de Nelson Rodrigues,  nunca evolui para o casamento. Quase sempre se desdobra em tragédias, dificilmente, num casamento com véu e grinalda. Amor para ele não é o equivalente a “viveu feliz para sempre”, ou “tiveram muitos filhos” e “compraram uma casa”. Para ele, amor é desejo. Esse é o verdadeiro sentimento que une um homem e uma mulher, resultado de uma identidade intensa. O desejo arrasta os indivíduos para situações de conflito e rompimento com as normas sociais. É o que não estava no script, mas também é o espaço de transformação social e individual.

quinta-feira, 12 de julho de 2012


Você não conhecia a solidão até o outro chegar

As emoções são impossíveis de serem conhecidas senão pela interação com o outro. A própria solidão não é uma emoção que se possa experimentar sozinho. Um indivíduo, que nasceu e foi abandonado no Alasca por uma mãe ingrata, e que cresceu sem qualquer companhia, jamais compreenderá o que é solidão. Vamos para uma hipótese menos absurda. Um náufrago chega a uma ilha deserta, depois de certo tempo, ele esquece o que é dispor de companhia e também o que significa estar só. A solidão deixa de existir para ele. Somente o outro pode lhe dizer que está só.

A verdadeira solidão, que é aquela que não cessa mesmo no centro urbano, você só conhece quando surge a pessoa que  te completa. Nesse momento entende que esteve sozinho todo um tempo e nem percebeu. Era um solitário errante e nem sabia disso. Depois de conhecer a verdadeira solidão, o mundo se torna pequeno. Qualquer lugar do mundo não fará diferença, pois só faria se aquela pessoa estivesse lá. Ela não estará, então, qual a importância de para onde ir? Assim, você retorna a situação de errante. No final, penso que não há outra opção ao ser humano senão a condição de errante. Dificilmente, alguém tem a felicidade de viver por toda uma vida com a pessoa que lhe apresentou a solidão.

O que é válido para o sentimento de solidão pode ser estendido para  outras emoções. Veja a emoção do beijo. Ele pode ser apenas uma rotina burocrática. Odeio beijos burocráticos, mas eles são mais comuns que deveriam. Lembra-se daquele amigo que chega beijando todo mundo no trabalho? Pois esse é um beijo burocrático. Ele segue uma rotina, tem um horário, tem um significado comum e pode ser massificado. Burocracia weberiana puríssima!!! Não tem emoção nenhuma. A pessoa te beija burocraticamente, você finge um sorriso e que gostou, e todos experimentam aquela situação de normalidade. O verdadeiro beijo é anormal. Ele não estava na rotina. Ele não era esperado. Ele é uma quebra de rotina. Você lá ia naquela vidinha besta e de repente alguém surge no seu caminho, te abraça e sem te dar tempo de pensar, te beija. Pronto! Você descobre que há tempos não tinha sido beijado ou que nunca foi beijado! Você descobre a emoção do beijo e a sua falta. Há pessoas que vivem uma existência inteira sem conhecer o verdadeiro beijo, morrem sem sequer saber que ele existe.

Aqui leitor já não preciso mais explicar porque a emoção é uma construção social. Ela não existe antes da interação, não é uma qualidade biológica. No entanto, durante séculos foi colocada de lado como objeto de estudo pela Sociologia, porque não possui a concretude dos números, dos questionários, das tabelas... Como quantificar emoções? Como descrevê-las de modo científico? Como definir suas consequências e desdobramentos? Mas esses são desafios para Sociologia e não limitações.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

O vampirismo cristão


Minha amiga colocou-me um problema sociológico:  o vampiro da série O Crepúsculo, recorde de bilheteria no cinema e o preferido de adolescentes, quer casar antes de qualquer relação sexual. Pareceu-lhe que o vampiro perdera seu glamour ou que ocorria uma evidente contradição entre vampirismo e casamento. Em suas palavras:

- Veja bem, Cinara.  A menina está ardendo de desejo. Quase pede:  pelo amor de Deus transe comigo. E o vampiro resolve respeitá-la. Um vampiro que respeita!!! Antigamente, os vampiros davam mordidas, arrancavam sangue. Era o desejo vermelho pela alma. Agora o vampiro quer esperar o casamento!... Só casando!...

Para a Sociologia, é possível explicar por que  o vampiro deixou de ser uma entidade maléfica? De um ser excomungado pela Igreja, a quem foi retirado o direito de morrer, tornou-se o menino bem comportado que ama de maneira contida e quer casar? Ora, se voltarmos ao Drácula de Bram Stoker – obra que marca a criação do personagem, embora a lenda do Conde Drácula seja anterior a publicação  – sem dúvida, há uma distância imensa entre o personagem de O Crepúsculo e aquele do romance de 1897.

O vampiro de Bram Stoker é um guerreiro que rompe com a Igreja Católica por não perdoá-la por provocar o suicídio de sua amada. Ama tanto sua esposa, que vai contra o mundo real e os céus. Condenado a viver numa zona intermediária entre o Céu e a Terra, sua alma errante inspira o desejo nas mulheres, como se o desejo fosse uma doença sem cura, que consome não apenas o corpo, mas o espírito após a morte. O desejo profano. Já o vampiro da série Crepúsculo é um vampiro cristão, que respeita o casamento como um ritual necessário e anterior ao sexo. Mas por que? Por que recriamos o vampiro como cristão no século XXI?

Não tenho uma resposta pronta para a questão. Aliás, acho que a pergunta é mais necessária que a resposta. Vou dar algumas sugestões, mas antes gostaria de afirmar que vejo o fato como mais uma evidência de uma tendência comum ao comportamento moderno: estamos evoluindo para uma sociedade mais assexuada. Não vou me surpreender quando chegar o dia em que o sexo se tornará vulgar, feio, brega ou qualquer coisa do gênero.

Tenho um amigo homossexual que divulgou seu noivado no Facebook. Fiquei pensando, qual o sentido do noivado na relação homossexual? Os homossexuais têm tudo para serem diferentes, pois romperam com a família, o vizinho, os amigos, os coleguinhas de escola... Mas não, o indivíduo resolve dar um passo atrás e quer legitimar sua união a partir do mesmo ritual sagrado criado pela Igreja Católica. O ritual que serviu de fundamento para discriminar, queimar na fogueira os próprios homossexuais... Eles não foram apenas mais infelizes em razão da Igreja Católica, eles foram queimados vivos pela Igreja Católica. Mas no século XXI, o homossexual diz: “Nós também podemos ter um casamento cristão”. “Também somos filhos de Deus!”. “Também amamos para o todo sempre!”. “Temos o direito de constituir família, ter filhos, deixar herança...”  Sim, é verdade. Acontece que todo esse arsenal capitalista, que ele reivindica, foi construído com base na renúncia à sexualidade e o movimento homossexual se fez na afirmação da sexualidade. O desejo sem justificativas. O sexo pelo sexo. 


O vampiro que quer casar antes de fazer sexo é irmão do homossexual que ficou noivo. São exemplos de um mesmo fenômeno do mundo moderno: evoluímos para uma sociedade cada vez mais disciplinar. Aqui, lanço mão de Nobert Elias para explicar o conceito.

Para Elias, o tecido social, a rede de necessidades em que está o indivíduo o leva a desenvolver  maior controle sobre pulsões, instintos e provoca reações emotivas a situações que antes passariam por normais ou corriqueiras. Por exemplo, hoje, soar o nariz  à mesa provoca reações de nojo em quem assiste. Elias foca seus estudos na refinação dos hábitos sociais que acontece quando a nobreza migra para a Corte, na França. Demonstra que as emoções humanas não são intrínsecas, necessárias e de origem biológica. Nascem e se modificam conforme o momento histórico e a rede de relações sociais na qual estamos inseridos. Nem sempre sentimos asco, amor, tristeza pelos mesmos fatos. A disciplinalização de conduta, uma espécie de autocontrole, desenvolve reações emocionais diferentes conforme a pressão social a que o indivíduo está submetido.

Mas o que isso tem a ver com o vampiro que casou e o homossexual que ficou noivo? Na atualidade,  associamos cada vez com maior naturalidade amor e sexo, como dois momentos necessários e coincidentes.  Não nos permitimos pulsões sexuais divorciadas de qualquer sentimento. Não permitimos o desejo acontecer simplesmente, é preciso que ele ocorra num lugar específico, numa situação planejada e abençoada, coroado pelo amor. Em outras palavras, é preciso refrear  os instintos  e pulsões até o momento do sagrado. Sei que dirão que no passado a sexualidade foi muito mais reprimida e o casamento uma instituição muito mais legítima e necessária que hoje. Acontece que, até os anos 60, não se supunha o casamento como o espaço ideal para vivenciar a sexualidade, pois a mulher estava excluída desse direito. Somente quando conquistou lugar no mercado de trabalho, a mulher passou reivindicar e a defender a realização no casamento nos vários aspectos da vida, incluindo, o sexual.

Posso afirmar, depois de tudo que li sobre casamento nos documentos da Igreja Católica, que essa instituição não foi criada para vivenciar a sexualidade. O casamento foi durante muito tempo um mero contrato econômico, laico, que ocorria entre famílias e sem qualquer  participação da Igreja.  Essa só irá reivindicá-lo como um sacramento, no século XII, com o objetivo político de interferir na união entre famílias nobres, o que significava a  anexação ou partilha de territórios e, em outras palavras, poder.  O casamento foi aceito pela Igreja como um celibato de menor grau. Pois, até então, pensava que a vida religiosa era para poucos, pois poucos estariam preparados para renunciar completamente ao mundo e a dedicar a Deus todos os seus dias. Havia um divórcio entre a vida dedicada a Deus e a vida mundana. O casamento é uma concessão da Igreja, que nasce com a reforma de seus dogmas.

Quando a Igreja começa a legislar sobre o casamento, desenvolve todo um conjunto de normas, onde estabelece os períodos permitidos  e até mesmo as posições aceitas na relação sexual. Há uma discussão entre historiadores sobre a influência que essas normas tiveram no crescimento populacional da Europa, já que os períodos em que o casal ficava proibido de manter relação sexual alcançavam parte considerável do ano. Somente na atualidade, o casamento passou a associar-se ao amor e a incluir também a sexualidade. O fundamento da união é o sentimento de amor, coroado pela realização sexual do casal. Essa associação, e diria confusão, entre amor, casamento e sexualidade é uma invenção atual.

Há uma evidência de que é possível a união duradoura, envolvendo sentimento e sexualidade. Parece claro que as coisas devam acontecer dessa forma, mas não é tão claro assim, pois só no século XX essa convenção se popularizou. No passado, os três momentos estavam muito bem separados. O prejudicial nessa associação é que ela cria regras morais para a sexualidade:  “só quando amamos uma pessoa é moralmente correto ter relações com ela”, ou que será preciso antes obedecer um ritual para viver qualquer experiência sexual. Há um elemento de incivilizado na sexualidade e no amor romântico que somente um longo processo civilizador possibilitou que a instituição casamento os incluísse e que estivessem tão naturalmente associados.

sábado, 3 de dezembro de 2011

"Como tu queres que nós não tenhamos dúvidas, se elas nascem do amor?”  
D. Pedro à Marquesa de Santos


A dicotomia entre  razão e emoção
 nas cartas de D. Pedro à Marquesa de Santos

 A relação de D. Pedro I e D. Domitila, conhecida por Marquesa de Santos, pareceria estranha a um contemporâneo. Como explicar que D. Pedro I, na posição de monarca, tivesse uma amante e que o caso fosse de conhecimento público? Não apenas os mais próximos sabiam da amante, mas toda sociedade brasileira. Embora D. Pedro tivesse alguns cuidados, como ir visitá-la somente à noite, adotava outras atitudes que hoje se confundiriam com deboche. Por exemplo, viajar e levar D. Domitila junto com a esposa na comitiva. Ou, ainda, elevá-la a condição de primeira dama da rainha D. Leopoldina.
O que pensava D. Pedro? Que o Brasil estava afastado da verdadeira nobreza situada na Europa, então aqui era possível “sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lantejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser!” , como diria Machado de Assis[1]? Ou haveria entre D. Pedro e D. Leopoldina um acordo entre dama e cavalheiro para manter as formalidades do casamento?

Importante ressaltar que a sociedade brasileira não via com bons olhos a dupla relação de D. Pedro. Tanto que não foi sem resistência das famílias nobres da época, que D. Domitila matriculou sua filha, Dona Francisca Pinto Coelho de Mendonça, no colégio de Madame Mallet, no Rio de Janeiro:

“Várias das melhores famílias retiraram seus filhos do colégio. Muitas falaram da ofensa que lhes havia sido feita com o enviar uma filha de tal pessoa entre seus filhos, e é certo que em parte pelo sentimento geral sobre a situação, mas principalmente por um verdadeiro respeito a Imperatriz” (Rangel, 1984:200).   
Apesar das resistências e críticas, o caso com D. Domitila era notoriamente conhecido  pela sociedade e reconhecido pelos familiares. Tanto era pública a segunda relação, que D. Pedro registrou todos os filhos que teve com Domitila e, por decreto, obteve o reconhecimento da Igreja Católica. Nas cartas que escreveu à amante, em vários momentos envia  lembranças aos seus familiares e empenha ajuda  financeira. Entre as cartas organizadas por Alberto Rangel, constam algumas direcionadas diretamente ao pai e a mãe de Domitila. Deduz-se daí que o relacionamento era conhecido e aceito por seus familiares.

 A hipótese que tenho é que para D. Pedro era natural manter  uma amante, pois o casamento não incluía a realização sentimental, não exigia para a sua concretização qualquer sentimento entre o casal, que não fosse de respeito e no máximo amizade. O amor acontecia fora do casamento, como um sentimento marginal. Por essa razão,  não havia contradição para D. Pedro I entre estar casado e nutrir um sentimento devotado por outra pessoa. Tanto que em todas as cartas a Domitila, D. Pedro conclui dizendo-se “amigo, amante, fiel, constante, desvelado, agradecido e verdadeiro” (idem, 215). Para o imperador, a situação de amantes não diminuía o sentimento, não o tornava menos verdadeiro e  fiel. O casamento era meramente uma exigência política e social, que ele, compreendendo a sua posição, respondia a contento.

Quando D. Leopoldina vem a falecer, há uma expectativa se ele se casaria ou não com D. Domitila. No entanto, nas cartas que trocam os amantes, em nenhum momento eles discutem essa hipótese. É interessante a maneira como racionalmente D. Pedro escolhe quem será a sua segunda esposa oficial. Atribui ao barão Maréschal o trabalho de buscar um segundo casamento. Inicialmente, eles passam em revista as damas da nobreza solteiras: “...Ele então disse que sabia, pela finada imperatriz, que a duquesa Marie Anne era muito doentia, o que não lhe convinha. Fez outra objeção à princesa de Nápoles e lembrou-se naturalmente das duas princesas da Baviera” (idem: 209). Ele deveria, então, enviar correspondência à corte dessas possíveis noivas e aguardar até um ano a resposta. Como o prazo lhe pareceu muito longo, resolveu solicitar ao seu ex-sogro a mão de uma de suas cunhadas. Mais prático.

O barão Maréschal, responsável por realizar contatos com o imperador da Áustria, conclui que: “Tal casamento restabelecerá nossas relações e facilitará os negócios com Portugal, e penso mesmo que a princesa que conceder sua mão a Dom Pedro, se agir com inteligência, não terá que se arrepender de sua decisão” (idem: 209).
As cartas de D. Pedro à Marquesa de Santos ilustram muito bem a tese que venho defendendo neste blog: a associação entre amor, sexualidade e casamento só aconteceu recentemente. Mesmo no século XIX, que é o momento em que se desdobra a história de amor do imperador brasileiro, tal associação ainda não está consolidada. O amante daquele século sabia diferenciar muito bem casamento e amor, também tinha convivência pacífica com sua sexualidade. Chama a atenção a forma natural como D. Pedro descreve os problemas fisiológicos ou infecções que ocorriam ao seu órgão sexual. Não é uma troca de intimidade entre amantes. Hoje, seria muito mais romântico não fazer tais descrições:

“Tua coisa apenas deitou uma pequena lágrima de água branca e tem a venta alguma coisa arrebitada, mas não há de ser nada e creio que será procedido da debilidade que ainda entretém esta umidade no canal da uretra” (idem:49)

“Para veres a esquisitice de tua coisa, remeto a camisa, e onde vai pregado um alfinete verás oque deitei espremendo às seis horas, e mais acima o que espremi depois, que já não é nada” (idem:39)
As cartas de D. Pedro demonstram, ainda, outra hipótese que tenho defendido neste blog, a de que durante muito tempo  o amor erótico foi  tratado como um sentimento que deveria localizar-se fora da  família. Em razão de suas características e  do comportamento que dele derivava, não poderia servir como fundamento para o casamento. Reconhecia-se no amor aspectos de “irracionalidade”, que impediriam estruturar uma família tendo-o por base. Quero afirmar que nossos antepassados delimitaram com maior clareza a esfera de racionalidade e a esfera da irracionalidade da vida.

Embora até hoje reconheçamos o comportamento um pouco irracional de quem se apaixona, a novidade é que só agora ele tornou-se a base do matrimônio.  O amor passou a existir dentro de uma instituição voltada para responder a questões objetivas da vida como: criar filhos, educá-los, pagar as contas no final do mês, planejar orçamento etc. A associação entre casamento e amor seria tão absurda ao homem do século XIX, quanto é para nós hoje exigir que dois empresários, a fim de constituir sociedade comercial, tenham que se apaixonar e fazer sexo.


[1]Assis, Machado. s/data. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Edigraf, São Paulo, Brasil, página 69.