domingo, 23 de maio de 2010

Do amor clandestino ao amor civilizado


Quando uma relação de amor se encontra no seu apogeu, não há margem para qualquer interesse no mundo circundante; o par de amantes é suficiente em si e para si mesmo, não necessita sequer do filho que têm em comum para fazê-los felizes”, sentencia Freud em O Mal- Estar na Civilização. Para ele, nenhuma civilização é possível sem um mínimo de repressão dos instintos sexuais primários, mas nessa obra Freud acrescenta mais um problema a ser investigado. Não é apenas a busca ilimitada pelo prazer que é impossível na cultura civilizada, também a satisfação de Eros, a plena identidade entre os indivíduos. Levado ao seu extremo, a união dos amantes não contribui para a reprodução da sociedade, pois o casal não tem necessidade sequer do filho para completá-lo. Assim, a cultura leva inevitavelmente à repressão sexual, mas também dos laços emocionais extremos. O indivíduo se disciplina não apenas em seus impulsos sexuais, mas  o desejo para amar, odiar, alegrar-se ou entristecer-se.

Freud não fundamentou empiricamente suas afirmações e categorias de análise: ego, id e superego. Podemos dizer, sem sermos injustos, que foi Nobert Elias, em O Processo Civilizador, que construiu uma fundamentação histórica para essas categorias, demonstrando de que forma a sociedade caminhou para maior controle do indivíduo sobre suas pulsões, instintos e sentimentos. No entanto, as descrições históricas de Nobert Elias concentraram-se principalmente sobre como o indivíduo moderno civilizado modificou seus hábitos alimentares e fisiológicos, refreou a expressão de suas vontades primárias, adquiriu um controle automático sobre sua conduta. Os dados empíricos que ele levanta se limitam a descrever mudanças nas normas de condutas sociais. Sua narrativa não aprofunda como o mesmo processo disciplinar aconteceu em relação aos sentimentos.

Nobert Elias diz que o amor é uma sublimação de instintos primários, que passa a existir no momento em que as vontades sexuais em relação ao outro não podem ser imediatamente satisfeitas. Na Idade Média, os cavaleiros tinham menor controle sobre suas paixões e podiam expressar abertamente seus impulsos violentos e sentimentos de alegria e dor. A interdependência na sociedade da corte européia levou o indivíduo a maior vigilância sobre sua conduta. O campo de batalha foi transportado para dentro do indivíduo:

“Parte das tensões e paixões que antes eram liberadas diretamente na luta de um homem com outro terá agora que ser elaborada no interior do ser humano. As limitações mais pacíficas a ele impostas por suas relações com outros homens espelham-se dentro dele; um padrão individualizado de hábitos semi-automáticos se estabeleceu e consolidou nele, um “superego” específico que se esforça por controlar ou suprimir-lhe as emoções de conformidade com a estrutura social” (Nobert Elias, O Processo Civilizador, vl 2, pag. 203).

Embora enunciado por Nobert Elias, o processo de repressão dos sentimentos, de autocontrole automático sobre as paixões não está historicamente descrito. É preciso narrar o processo pelo qual o amor deixa de ser clandestino e torna-se um sentimento bem comportado no seio da família nuclear burguesa.

Nos primeiros anos do cristianismo, o sentimento entre homem e mulher não era abençoado pela Igreja e até mesmo o casamento era considerado uma forma de adultério. Não constituía um caminho para a vida cristã e, por essa razão, não era um sacramento. O cristão a ser agraciado com a salvação era aquele capaz de renunciar completamente ao mundo. Como a castidade era uma qualidade de alguns poucos eleitos, a Igreja não exercia controle rigoroso sobre o comportamento de seus fiéis e sacerdotes. O celibato figurava como ideal somente para aqueles que se entregassem completamente a vida cristã e que fossem abençoados por Deus. Sozinho, por seus próprios meios, o homem não conseguia renunciar aos prazeres do mundo:

Quem deseja ser casto, deve recorrer ao Senhor e instar-lhe fervorosamente em oração, para que se digne de conceder-lhe esta mercê; porque se ele liberalmente lha não der, de nada lhe servirão todos os arbítrios para a conseguir (A mocidade enganada, desenganada: (...), Manoel Conciencia, Officina Augustiniana, Lisboa, 1730).

A partir de Gregório VII, a Igreja passa a defender o celibato para os sacerdotes e o casamento como uma concessão para o homem comum. Todos devem buscar uma vida casta e moderada. O casamento torna-se o espaço onde a relação sexual pode se realizar desde que observada uma série de prescrições: não ser parente até o quarto grau, respeitar os dias santos... A partir do momento em que o casamento se torna um sacramento, ele se legitima por outras razões que não apenas aquelas de interesse econômico: precisa contar com o consentimento mútuo, ter por fim a criação e educação dos filhos e estar baseado no sentimento de solidariedade e ajuda mútua. São conteúdos que dão ao casamento uma santificação, que até então não possuía. No entanto, não é o amor o sentimento básico do casamento no final da Idade Média, mas sim o sentimento de caridade. Esse é o início de um processo para tornar um sentimento que tinha sido sempre clandestino, conforme descrevi em outros posts, para ser o que legitimará a união do casal.

No entanto, a extensão do celibato para todos os membros da Igreja e do casamento como um celibato de menor grau a todos os laicos é lento e sofre fortes críticas e protestos mesmo dentro dos quadros da Igreja. A sociedade da corte ainda é muito libertina e os nobres colocarão forte resistência a regulação da Igreja Católica sobre o casamento, principalmente, porque interferia nos seus interesses de transmissão de herança.

Maior controle sobre as pulsões sexuais e o casamento como devendo ser acompanhado de um sentimento e não apenas de cálculos utilitários é resultado de uma cultura protestante burguesa que irá ascender na Europa e que busca se distanciar dos nobres em seu estilo de vida. Também decorre de maior liberdade que o indivíduo moderno adquire para a construção de sua identidade. O sentimento de amor está relacionado ao processo de individuação, pois significa o aproximar-se do outro por afinidades (valores, condutas, padrões estéticos e ideais) e não em resposta aos interesses familiares.

É essa narrativa histórica, descrita aqui de forma muito fragmentada e resumida, que é preciso ser feita dando conta do processo pelo qual a formação da sociedade moderna também foi acompanhada pela repressão dos sentimentos e da sua condução para a forma bem comportada do casamento.

Um comentário:

  1. Eu concordo com seu texto, pois acho que realmente somos moldados pelos valores morais hegemônicos e lutar contra esses valores é quase tão difícil como remar contra a maré. Muitas vezes deixamos de ser feliz por pensar no que o outro vai falar, como vai te castrar com o olhar ou com palavras repressoras. As vezes nossos instintos falam mais alto e quando isso acontece somos taxados de groços. Talvez não faça sentido o que estou escrevendo, mas foi ao que me arremeteu quando li o seu texto. Achei brilhante a forma como voce abordou esse tema tão polêmico.

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