Me surpreendo com a estranha e constante associação entre felicidade e realização na sociedade atual. O problema não é que tendo prosperado nos negócios e na profissão, naturalmente, o indivíduo se sinta feliz. Mas sim, que haja uma necessidade de evidenciar a felicidade independente das adversidades que a vida possa trazer. Veja a revista Caras. Passo as páginas e fico surpresa de não ter uma única foto onde a pessoa pelo menos não esteja forçosamente sorrindo. Um único rosto sem sorriso, não tem. Até falando da morte, os ricos e famosos sorriem.
Na minha juventude, ser feliz era como ser cínico. Vivíamos uma crise existencial constante sobre o sentido da vida e a pobreza da política nacional. Como era possível ser feliz, enquanto a maior parte da população brasileira passava fome e vivia na miséria? Como era possível contentar-se com uma casa e um carro, enquanto o país vivia uma ditadura civil que limitava as liberdades individuais? Era evidente a impossibilidade de ser feliz sem liberdade. Só a pequena burguesia se bastava com o crescimento econômico. Os intelectuais e a esquerda brasileira tinham orgulho da tristeza ou no mínimo da depressão ébria. Além do pensamento marxista que ainda inspirava a juventude brasileira nos anos 80, havia o existencialismo de Sartre: o homem está condenado à liberdade e por essa razão, há uma dúvida existencial da qual não pode fugir. Em suas menores escolhas, ele participa da definição do que é ser humano e é necessariamente infeliz por ter que escolher sem parâmetros.
Para mim, havia um exagero grotesco naquela proposital infelicidade, porque mesmo aqueles que não amargavam nenhuma dor pelas razões antes citadas, eram infelizes na aparência. Ser infeliz tinha um ar de intelectualidade e inteligência. Hoje invertemos os pólos.
Ser feliz é sinônimo de realização e infeliz de incompetência.
Feliz é aquele que conquistou tudo que a vida moderna contemporânea oferece como oportunidade: emprego estável, carreira brilhante, carro do ano, apartamento de cobertura, grifes famosas, viagens internacionais... E o infeliz é aquele que não teve nada disso. Duas questões são injustas nessa narrativa: a eliminação do acaso e dos condicionantes sociais, e a falsa idéia que o possuir é suficiente para resolver nossas questões mais íntimas e existenciais. Trocando em miúdos, a falsa idéia de que o consumo traz felicidade.
Se uma máquina do tempo trouxesse um indivíduo do século XII – XV para hoje, ele acharia absurdo que as pessoas fossem responsabilizadas por sua infelicidade. Maquiavel, que escreveu nesse período, atribuía a prosperidade do príncipe em parte a sua habilidade política e suas escolhas, mas pelo menos a outra metade a sorte e aos acasos:
“...Creio que se pode admitir que a sorte seja árbitro da metade dos nossos atos, mas que nos permite o controle sobre a outra metade, aproximadamente. Comparo a sorte a um rio impetuoso que, quando enfurecido, inunda a planície, derruba casas e edifícios, remove terra de um lugar para depositá-la em outro” (Maquiavel, O Príncipe).
Penso que essa arrogância feliz tenha a ver com o momento em que vivemos, onde tudo parece possível. Foi capa da revista Superinteressante que a próxima geração conhecerá a imortalidade. Imagina, agora que proclamamos a imortalidade, o que falta?
Mas essa é só uma face do presente, a outra remete ao consumismo. A possibilidade de adquirir tudo que necessite e mais o supérfluo remete a conclusão de que não há o que reclamar. Que problema pode ter o indivíduo que pode comprar tudo que seus olhos alcançam, viajar para todos os lugares, que possui um emprego ótimo? Que podendo produzir-se com as melhores grifes com certeza também irá conquistar o grande amor de sua vida? Qual é o problema? Só aquele que não pode consumir, por sua incompetência e falta de inteligência, está relegado a sofrer.
Se a geração dos anos 80 exaltava a dor existencial até quando não a compreendia, a atual a eliminou por completo. Podemos sofrer por não ter o que comprar, por não ganhar o salário desejado, por não estar no emprego almejado, mas jamais pelo sentido da existência.
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Adoro a maneira como expões seus argumentos, pois são tão claros.
ResponderExcluirConcord com o Rubes do comentário acima. Vc é clara. E iluminada.
ResponderExcluirCreio que foi Fernanda Montenegro quem disse uma vez que a diferença entre o brasileiro e o europeu é que o europeu tem vergonha de ser feliz. Um pouco como os brasileiros que vc descreveu como sendo os da sua (aliás, nossa)adolescência/juventude.
Obrigada pelos comentários, Leandro. São anotações para um livro que ainda pretendo escrever. Vou juntando idéias, um dia elas estarão prontas.
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