quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A problematização do amor






Depois de sofrer muito por um amor não correspondido, notei que eu adorava a pessoa com sentimentos e valores muito próximos aqueles vindos da Igreja Católica. Foi a primeira vez que suspeitei existir uma confusão e que eu era a própria vítima dessa confusão.


O imaginário que cerca o conceito de amor tem algumas regras estranhas: a) Desejar a felicidade do outro mais que a sua própria felicidade; 2) Colocar a realização sexual em segundo plano; 3) Ser companheiro do outro qualquer que seja a situação; 4) Substituir ao longo do tempo a paixão por sentimentos mais constantes e amenos. Há outras regras, mas note que em todas elas há um elemento em comum: a renúncia a vontade pessoal em favor do outro. Ora, não há nada mais cristão que isso!


Não acredito que as pessoas sempre amaram segundo essas regras, houve um momento em que elas ganharam o status de verdade. Então, eu quis entender como isso aconteceu.

De todos os livros que eu li até o momento, um foi muito esclarecedor: “O amor cortês” de André Capelão. Escrito no século XII, ele deixa claro como o amor era um sentimento pagão, exterior ao casamento e que estava presente principalmente nas relações clandestinas. O amor só era possível entre amantes, não comportava longas durações, não incluía a fidelidade, não tinha nenhum objetivo produtivo, como ter filhos ou comprar uma casa. O amor era um sentimento efêmero, tempestivo, incontrolado e sexualizado. Dirá o leitor, era uma paixão. Não, pois não havia divisão entre amor e paixão, essa foi uma invenção posterior da sociedade. O amor era um sentimento incapaz de se comportar nas rotinas estabelecidas e porque era essa sua natureza, as mães não o desejavam para as filhas.


No livro, El Amor en La Idad Media, Jean Verdon recupera o diálogo do cavalheiro La Tour Landry e sua esposa sobre a atitude que devem adotar as jovens diante do amor - o texto é de 1371. O cavalheiro sustenta que a donzela ou a dama pode amar em algumas situações honráveis, como por exemplo, quando espera casar-se ou quando está casada. A mãe discorda, preferem que não amem, pois é pecado amar um homem mais que a Deus ou ter uma relação extraconjugal. Ela não admite a possibilidade da mulher amar o seu próprio marido.


Na idade Média, esse raciocínio não é absurdo. Era clara a dificuldade de existir amor entre o casal, pois os casamentos eram contratos arranjados. Interesses políticas e econômicas das famílias definiam as uniões. As mulheres se casavam muito jovens, aos doze anos, com homens muito mais velhos. A família interessava preserva a honra da donzela, mais que se preocupar com sua felicidade, pois ela era um bem de troca. Um bem que depois passava a ser do marido a quem estava completamente subordinada. Na cultura medieval, aceitava-se que o marido corrigisse a esposa, por isso eram constantes as agressões a mulher. Além disso, o casamento era um contrato com toda a racionalidade própria de um contrato. Especificava-se, no caso das famílias burguesas, por exemplo, a obrigatoriedade do marido de ensinar sua profissão ao enteado.


Tudo muda de configuração quando a Igreja Católica sacramentaliza o casamento, no século XII e XIII – o mesmo momento em que Foucault identifica uma mudança no mundo religioso em relação à penitência e confissão. A Igreja faz uma reorganização da casa (história que contarei numa outra data) e estabelece o casamento como uma forma de celibato de menor grau, um caminho para a ascensão a Deus, de renúncia ao mundo e de exercício dos valores cristãos. Para Santo Tomás de Aquino, a associação do homem e da mulher, mesmo quando não tem como objetivo a procriação, pode ser abençoada, desde que união das almas preceda a união dos corpos. Ao casar-se, homem e mulher se tornam um só corpo e por essa razão não há pecado na relação sexual. No entanto, para que essa união seja legítima e abençoada, é preciso que seja espontânea, que exista um sentimento recíproco.


Veja que nesse momento, o amor entra no casamento, mas não sem alterar o seu conteúdo. Não são mais interesses econômicos e políticos, não são desejos sexuais, mas o amor que torna-se o fundamento do casamento. Não o amor no sentido que Capelão dava ao termo, não o amor clandestino, pagão, sexualizado, impulsivo; mas o amor fraternal, desprendido, de solidariedade e de caridade. É nessa hora que a Igreja Católica problematiza a relação a dois. Ela não pode mais ser um contrato econômico, não pode acontecer entre parentes próximos, deve envolver o mútuo consentimento, deve vir acompanhada de um sentimento de desprendimento, não deve visar a realização sexual, deve ter como objetivo a procriação e a educação dos filhos.... Ao mesmo tempo em que a Igreja cria todas essas exigências ao casamento, essa instituição se torna uma área de sua jurisdição. Só ela estava habilitada a tratar os problemas conjugais, a definir quem podia casar-se com quem, a participar da educação dos filhos....


Quais são as conseqüências disso para o homem moderno? Penso que continuamos a tratar nossos relacionamentos com os filtros dos valores católicos. O casamento é um contrato econômico, que dificilmente comporta um sentimento apaixonado. Há rotinas no casamento que exaurem com o desejo sexual e com qualquer fantasia amorosa. O amor é para mim um sentimento que tem o direito de ser pagão. Ele envolve o galanteio, o flerte, o enamorar-se que subordinado a uma rotina e a problemas domésticos, inevitavelmente, esvai-se. A relação a dois há de sempre precisar de um pouquinho de imaginação para valer à pena.

Um comentário:

  1. muito bom o texto parabens pelo blog

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