domingo, 28 de fevereiro de 2010

A estranha associação entre felicidade e realização

Me surpreendo com a estranha e constante associação entre felicidade e realização na sociedade atual. O problema não é que tendo prosperado nos negócios e na profissão, naturalmente, o indivíduo se sinta feliz. Mas sim, que haja uma necessidade de evidenciar a felicidade independente das adversidades que a vida possa trazer. Veja a revista Caras. Passo as páginas e fico surpresa de não ter uma única foto onde a pessoa pelo menos não esteja forçosamente sorrindo. Um único rosto sem sorriso, não tem. Até falando da morte, os ricos e famosos sorriem.

Na minha juventude, ser feliz era como ser cínico. Vivíamos uma crise existencial constante sobre o sentido da vida e a pobreza da política nacional. Como era possível ser feliz, enquanto a maior parte da população brasileira passava fome e vivia na miséria? Como era possível contentar-se com uma casa e um carro, enquanto o país vivia uma ditadura civil que limitava as liberdades individuais? Era evidente a impossibilidade de ser feliz sem liberdade. Só a pequena burguesia se bastava com o crescimento econômico. Os intelectuais e a esquerda brasileira tinham orgulho da tristeza ou no mínimo da depressão ébria. Além do pensamento marxista que ainda inspirava a juventude brasileira nos anos 80, havia o existencialismo de Sartre: o homem está condenado à liberdade e por essa razão, há uma dúvida existencial da qual não pode fugir. Em suas menores escolhas, ele participa da definição do que é ser humano e é necessariamente infeliz por ter que escolher sem parâmetros.

Para mim, havia um exagero grotesco naquela proposital infelicidade, porque mesmo aqueles que não amargavam nenhuma dor pelas razões antes citadas, eram infelizes na aparência. Ser infeliz tinha um ar de intelectualidade e inteligência. Hoje invertemos os pólos.

Ser feliz é sinônimo de realização e infeliz de incompetência.

Feliz é aquele que conquistou tudo que a vida moderna contemporânea oferece como oportunidade: emprego estável, carreira brilhante, carro do ano, apartamento de cobertura, grifes famosas, viagens internacionais... E o infeliz é aquele que não teve nada disso. Duas questões são injustas nessa narrativa: a eliminação do acaso e dos condicionantes sociais, e a falsa idéia que o possuir é suficiente para resolver nossas questões mais íntimas e existenciais. Trocando em miúdos, a falsa idéia de que o consumo traz felicidade.

Se uma máquina do tempo trouxesse um indivíduo do século XII – XV para hoje, ele acharia absurdo que as pessoas fossem responsabilizadas por sua infelicidade. Maquiavel, que escreveu nesse período, atribuía a prosperidade do príncipe em parte a sua habilidade política e suas escolhas, mas pelo menos a outra metade a sorte e aos acasos:

“...Creio que se pode admitir que a sorte seja árbitro da metade dos nossos atos, mas que nos permite o controle sobre a outra metade, aproximadamente. Comparo a sorte a um rio impetuoso que, quando enfurecido, inunda a planície, derruba casas e edifícios, remove terra de um lugar para depositá-la em outro” (Maquiavel, O Príncipe).

Penso que essa arrogância feliz tenha a ver com o momento em que vivemos, onde tudo parece possível. Foi capa da revista Superinteressante que a próxima geração conhecerá a imortalidade. Imagina, agora que proclamamos a imortalidade, o que falta?

Mas essa é só uma face do presente, a outra remete ao consumismo. A possibilidade de adquirir tudo que necessite e mais o supérfluo remete a conclusão de que não há o que reclamar. Que problema pode ter o indivíduo que pode comprar tudo que seus olhos alcançam, viajar para todos os lugares, que possui um emprego ótimo? Que podendo produzir-se com as melhores grifes com certeza também irá conquistar o grande amor de sua vida? Qual é o problema? Só aquele que não pode consumir, por sua incompetência e falta de inteligência, está relegado a sofrer.

Se a geração dos anos 80 exaltava a dor existencial até quando não a compreendia, a atual a eliminou por completo. Podemos sofrer por não ter o que comprar, por não ganhar o salário desejado, por não estar no emprego almejado, mas jamais pelo sentido da existência.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A problematização do amor






Depois de sofrer muito por um amor não correspondido, notei que eu adorava a pessoa com sentimentos e valores muito próximos aqueles vindos da Igreja Católica. Foi a primeira vez que suspeitei existir uma confusão e que eu era a própria vítima dessa confusão.


O imaginário que cerca o conceito de amor tem algumas regras estranhas: a) Desejar a felicidade do outro mais que a sua própria felicidade; 2) Colocar a realização sexual em segundo plano; 3) Ser companheiro do outro qualquer que seja a situação; 4) Substituir ao longo do tempo a paixão por sentimentos mais constantes e amenos. Há outras regras, mas note que em todas elas há um elemento em comum: a renúncia a vontade pessoal em favor do outro. Ora, não há nada mais cristão que isso!


Não acredito que as pessoas sempre amaram segundo essas regras, houve um momento em que elas ganharam o status de verdade. Então, eu quis entender como isso aconteceu.

De todos os livros que eu li até o momento, um foi muito esclarecedor: “O amor cortês” de André Capelão. Escrito no século XII, ele deixa claro como o amor era um sentimento pagão, exterior ao casamento e que estava presente principalmente nas relações clandestinas. O amor só era possível entre amantes, não comportava longas durações, não incluía a fidelidade, não tinha nenhum objetivo produtivo, como ter filhos ou comprar uma casa. O amor era um sentimento efêmero, tempestivo, incontrolado e sexualizado. Dirá o leitor, era uma paixão. Não, pois não havia divisão entre amor e paixão, essa foi uma invenção posterior da sociedade. O amor era um sentimento incapaz de se comportar nas rotinas estabelecidas e porque era essa sua natureza, as mães não o desejavam para as filhas.


No livro, El Amor en La Idad Media, Jean Verdon recupera o diálogo do cavalheiro La Tour Landry e sua esposa sobre a atitude que devem adotar as jovens diante do amor - o texto é de 1371. O cavalheiro sustenta que a donzela ou a dama pode amar em algumas situações honráveis, como por exemplo, quando espera casar-se ou quando está casada. A mãe discorda, preferem que não amem, pois é pecado amar um homem mais que a Deus ou ter uma relação extraconjugal. Ela não admite a possibilidade da mulher amar o seu próprio marido.


Na idade Média, esse raciocínio não é absurdo. Era clara a dificuldade de existir amor entre o casal, pois os casamentos eram contratos arranjados. Interesses políticas e econômicas das famílias definiam as uniões. As mulheres se casavam muito jovens, aos doze anos, com homens muito mais velhos. A família interessava preserva a honra da donzela, mais que se preocupar com sua felicidade, pois ela era um bem de troca. Um bem que depois passava a ser do marido a quem estava completamente subordinada. Na cultura medieval, aceitava-se que o marido corrigisse a esposa, por isso eram constantes as agressões a mulher. Além disso, o casamento era um contrato com toda a racionalidade própria de um contrato. Especificava-se, no caso das famílias burguesas, por exemplo, a obrigatoriedade do marido de ensinar sua profissão ao enteado.


Tudo muda de configuração quando a Igreja Católica sacramentaliza o casamento, no século XII e XIII – o mesmo momento em que Foucault identifica uma mudança no mundo religioso em relação à penitência e confissão. A Igreja faz uma reorganização da casa (história que contarei numa outra data) e estabelece o casamento como uma forma de celibato de menor grau, um caminho para a ascensão a Deus, de renúncia ao mundo e de exercício dos valores cristãos. Para Santo Tomás de Aquino, a associação do homem e da mulher, mesmo quando não tem como objetivo a procriação, pode ser abençoada, desde que união das almas preceda a união dos corpos. Ao casar-se, homem e mulher se tornam um só corpo e por essa razão não há pecado na relação sexual. No entanto, para que essa união seja legítima e abençoada, é preciso que seja espontânea, que exista um sentimento recíproco.


Veja que nesse momento, o amor entra no casamento, mas não sem alterar o seu conteúdo. Não são mais interesses econômicos e políticos, não são desejos sexuais, mas o amor que torna-se o fundamento do casamento. Não o amor no sentido que Capelão dava ao termo, não o amor clandestino, pagão, sexualizado, impulsivo; mas o amor fraternal, desprendido, de solidariedade e de caridade. É nessa hora que a Igreja Católica problematiza a relação a dois. Ela não pode mais ser um contrato econômico, não pode acontecer entre parentes próximos, deve envolver o mútuo consentimento, deve vir acompanhada de um sentimento de desprendimento, não deve visar a realização sexual, deve ter como objetivo a procriação e a educação dos filhos.... Ao mesmo tempo em que a Igreja cria todas essas exigências ao casamento, essa instituição se torna uma área de sua jurisdição. Só ela estava habilitada a tratar os problemas conjugais, a definir quem podia casar-se com quem, a participar da educação dos filhos....


Quais são as conseqüências disso para o homem moderno? Penso que continuamos a tratar nossos relacionamentos com os filtros dos valores católicos. O casamento é um contrato econômico, que dificilmente comporta um sentimento apaixonado. Há rotinas no casamento que exaurem com o desejo sexual e com qualquer fantasia amorosa. O amor é para mim um sentimento que tem o direito de ser pagão. Ele envolve o galanteio, o flerte, o enamorar-se que subordinado a uma rotina e a problemas domésticos, inevitavelmente, esvai-se. A relação a dois há de sempre precisar de um pouquinho de imaginação para valer à pena.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A problematização da sexualidade



A Igreja Católica problematizou a sexualidade ao final da Idade Média, afirma Michel Foucault em História da Sexualidade. A minha tese é que houve também uma problematização do amor. O imaginário que hoje cerca esse sentimento possui associações e projeções que se originaram na Igreja num momento passível de ser identificado e acompanhado.

Vou explicar Foucault para depois retornar a minha tese.

Segundo Foucault, a partir do século XII e XIII, a penitência tornou-se um sacramento. Até então, a Igreja exercia um controle muito frouxo sobre a sexualidade e a penitência era um caminho para a remissão dos pecados, mas de escolha do próprio pecador, uma espécie de autoflagelação: uso de cilício, interdição dos cuidados de limpeza, jejuns rigorosos, castidade...


A reforma nos dogmas e procedimentos da Igreja, torna o padre o responsável por intermediar a absolvição junto a Deus. É ele quem irá prescrever a punição conforme o pecado, e para conhecê-lo será preciso extrair a confissão do fiel.

A confissão, que antes era um ato voluntário e realizado em cerimônias coletivas, torna-se obrigatória para todo cristão e de caráter individual, regular e feita em ambientes reserv ados, diante da figura do padre. Os manuais eclesiásticos descrevem técnicas para extrair o máximo de detalhes sobre a intimidade, desejos e fantasias sexuais dos fiéis. Aos poucos a confissão torna-se a própria penitência:

“(...) Ela é um sacrifício, porque provoca a humilhação e faz enrubescer. Ela provoca a erubescentia. O penitente enrubesce quando fala e, por causa disso, ‘dá a Deus – diz Alcuíno – uma justa razão para perdoá-lo’”( Os Anormais, Martins Fontes, 2001: 219).

Esse é o momento em que a sexualidade para Foucault passa a ser problematizada. O desejo sexual é em si um pecado, que precisa ser vigiado, controlado e disciplinado. A confissão é uma técnica para disciplinar o desejo sexual, que tem início com a Igreja Católica e que se desenvolve na, pedagogia, na psicanálise e na medicina. Somos a única civilização, na opinião de Foucault, que produziu profissionais especializados em ouvir confidências sexuais.


Em História da Sexualidade, Foucault pergunta por que “de repente” um ato tão banal e comum como a masturbação do adolescente se tornou um problema fundamental a ser investigado pela pedagogia e a medicina? Livros e livros foram produzidos para descrever as complicações advindas: doenças, vícios, crimes, etc.


“Dessa forma, ele se tornou, progressivamente, o objeto de grande suspeita; o sentido geral e inquietante que, independente de nós mesmos, percorre nossas condutas e nossas existências; o ponto frágil através do qual nos chegam às ameaças do mal; o fragmento de noite que cada qual traz consigo” (História da Sexualidade – a vontade de saber, 2006:79).

E sobre a problematização do amor? Falarei no próximo post

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

O amor argentino

Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida eu vou te amar
Em cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente, eu sei que vou te amar
E cada verso meu será
Pra te dizer que eu sei que vou te amar
Por toda minha vida
Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que esta ausência tua me causou
Eu sei que vou sofrer a eterna desventura de viver
A espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida



“Eu sei que vou te amar” na voz de Gabriel Dominguez é diferente de todas as interpretações que já foram feitas sobre essa música. O cantor de Tango transforma a letra de Vinicius de Moraes quase numa sentença de morte. Se não for de morte, de infelicidade, de desventura, de martírio enquanto houver vida. Ouvi-la no Café Tortoni, em Buenos Aires, me fez voltar a minha tese: o amor tem conotações diferentes conforme a cultura.

Mais que isso, até creio que sentimos em maior ou menor intensidade de acordo com o ambiente cultural. Daí procurar não apenas pelo sentido de amar, mas pelas crenças que cercam a relação a dois e que falam sobre como sentir, a quem amar, os gestos, os cortejos e as desventuras. Enfim, reconstruir as narrativas que nos aprisionam em histórias de amor.

Amar para Vinicius de Moraes era quase uma fatalidade e tinha a leveza de quem admite uma situação da qual não pode fugir: “Eu sei que vou te amar por toda a minha vida eu vou te amar” e não há o que fazer a não ser conviver com a falta. Como há um tom de profecia nos versos do poeta, parece maturidade reconhecer os desencontros da vida como constantes inevitáveis.

O argentino prolonga as notas de Tom Jobim e a música se aproxima da ópera. Dessa forma, a ausência da amante condena o cantor de Tango a um martírio incurável e quase insuportável. É uma falta que jamais será preenchida e que se transforma num vício tal qual o cigarro ou a bebida. Há ainda outras diferenças: notou que no Tango, o amor é sempre platônico?

São essas estruturas narrativas sobre o amor, diferentes conforme a cultura e a época, que nos levam a repetir situações e a experimentar conflitos existenciais muito semelhantes aos dos nossos contemporâneos. Não fazemos escolhas novas a cada segundo de nossas vidas, na maioria das vezes nosso raciocínio faz uso de modelos mentais, experiências que se tornaram amplamente aceitas, e que nos dão segurança sobre as decisões tomadas. Por um lado, ganhamos em fazer uso da experiência dos outros, mas por outro, terminamos aprisionados em certos modelos de conduta.

Não é diferente no amor.